sábado, 2 de maio de 2009


Hegemonia e Cineclube (revisão de um texto meu dos anos 70)

A questão do lucro e da apropriação privada dos resultados do processo audiovisual remete a um outro aspecto: a divisão, na sociedade, entre os que têm o controle da produção e principalmente da distribuição do cinema, e aqueles a quem cabe apenas o papel de espectadores. Na visão de alguns teóricos cineclubistas[1], isso cria uma espécie de proletariado da comunicação ou do audiovisual, a que cabe apenas o papel de platéia passiva e a função de reproduzir um sistema de dominação.
Essa concepção apóia-se inicialmente no pensamento de Antonio Gramsci, e mais diretamente em sua conceituação da questão da hegemonia. Acreditando que as classes sociais disputam o poder na sociedade, o conceito gramsciano de hegemonia procura descrever a dialética de domínio e direção, os dois elementos necessários para que uma classe, ou bloco de classes, seja dominante numa sociedade.
Em outras palavras, uma classe domina as demais sobretudo por dispor de um aparato de coerção, quase sempre ligado ao Estado, constituído pelo monopólio da força: judiciário, polícia, exército. Este seria, então, o terreno da função de domínio da sociedade.
Mas apenas a força não é suficiente para assegurar uma estabilidade permanente. Os regimes baseados exclusivamente neste elemento de coerção têm maior ou menor duração histórica, mas sempre acabam por se desintegrar. Assim, uma classe que pretende ocupar uma posição dominante na sociedade tem de ser capaz de apresentar a sua própria ideologia, a sua visão de mundo, como sendo universal, como sendo verdadeira para os demais setores da sociedade (e, portanto, como não sendo mais uma ideologia). No maior grau possível, sua visão de mundo e o projeto político que ela encerra, têm de representar uma espécie de consenso da nação. Assim ela exerce a direção das demais classes (ou da maioria, ao menos).
Uma classe é hegemônica quando reúne essas duas condições, domínio mais direção, já que, isoladamente, nenhuma delas é suficiente para assegurar a estabilidade da sua supremacia.
Além do poder de coerção, a estabilidade do sistema, o capitalismo, e das classes a que ele beneficia estão fundamentalmente baseados na sua capacidade de apresentar-se como o melhor regime possível, o sistema das liberdades individuais e da fartura de bens de consumo. Não importa que essas liberdades efetivamente não existam no grau em que são apresentadas; que elas sejam limitadas seja por um alto nível de fragilidade institucional, nos países ditos do Terceiro Mundo, ou pelo poder extraordinário dos grandes grupos econômicos, por trás de todas as instituições que produzem conhecimento - ou melhor, ideologia - como as escolas, a imprensa, a televisão, etc. Não importa, também, que à alegada fartura de bens de consumo corresponda na verdade uma enorme miséria, seja nos países espoliados pelo imperialismo ou mesmo nos enormes bolsões de pobreza absoluta que se encontram cada vez mais nos países mais avançados do capitalismo. Haveria exemplo mais eloqüente que o da a atual crise econômica, quando os prejuízos de uma elite limitadíssima são distribuídos para todo o mundo, numa escala absolutamente inédita? Em meio aos escândalos de lucros pessoais, de salários nababescos pagos aos piratas que provocaram e são beneficiados por esta crise, reconstrói-se o “consenso” em torno do capital e o dinheiro público é investido maciçamente para salvar o sistema que, mais adiante, se e quando saneado, será novamente privatizado, devolvido à mesma quadrilha que controla as finanças do planeta.
O que importa, no sentido de que a classe dominante consiga manter a sua hegemonia sobre as demais classes sociais, é a sua capacidade de apresentar e convencer estas últimas de que seu regime é o melhor possível. Importa é que o senso comum da população esteja impregnado e convencido dessa idéia; que, nos mínimos detalhes do cotidiano, o capitalismo esteja se reproduzindo diariamente, na "naturalidade" com que se encaram os atos da sua reprodução: as relações de trabalho, os valores, comportamentos, etc.
Isto é a capacidade de direção, isto é o complemento indispensável da força, para se dizer que o capitalismo e a burguesia são hegemônicos: sua ideologia é universalizante, fazendo parte, inclusive, do senso comum da (maioria) da população.
A ideologia é um conjunto de valores (hábitos, costumes, tradições, preconceitos, etc.). A capacidade de universalizar, de generalizar para as demais classes a sua ideologia é dada pelas instituições, que Gramsci chamou de instituições valorativas ou aparelhos de hegemonia, porque estão, justamente, ligadas à difusão de valores. E, se quase todas as instituições exercem esse papel de disseminar a ideologia da supremacia burguesa, em maior ou menor grau, é claro que algumas dentre elas saltam à vista pelo seu caráter mais "especializado", pela sua função mais imediata e obviamente ideológica: o sistema educacional, a imprensa e todas as organizações que compõem a chamada indústria cultural.
Então, se as classes sociais competem entre si pela supremacia na sociedade - a chamada luta de classes - é óbvio que as classes lutam não apenas pela capacidade de domínio, mas também pela possibilidade de direção da sociedade. E que, portanto, essa luta não se dá apenas no plano econômico e político - ou militar - mas também no plano ideológico. O terreno, a arena da luta de classes não é constituído apenas pelas frentes sindicais e partidárias mas, com igual importância, pela frente ideológica e ética e pelo campo cultural.
Na mesma medida em que as classes sociais concorrem entre si para se apropriar do Estado, também competem pela influência na sociedade civil (que inclui muitas instituições estatais). A disputa por ambas as funções - de domínio e de direção - é igualmente importante: é inseparável e concomitante.
Daí que as classes sociais subalternas, que disputam com a burguesia a supremacia na sociedade, sempre que organizem instituições valorativas sob sua direção, enfraquecem e até impedem a supremacia burguesa. Nesse processo, forjam as formas, as superestruturas do seu poder futuro. Isto é, vão construindo as instituições que serão o canal para o exercício da sua hegemonia, o que é, ao mesmo tempo, condição indispensável para o seu próprio triunfo[2].
Além disso, as instituições sociais não são todas originárias do domínio burguês, e é possível fazer uma extensa listagem de, digamos, contra-instituições, a serviço das classes subalternas, como certos partidos políticos, por exemplo. Mas também o são um teatro nacional popular, escolas ligadas à formação de quadros sindicais, o próprio sindicato autônomo do Estado e - onde queríamos chegar - os cineclubes.
Dessa maneira a gente pode chegar a uma compreensão do que seja cineclube. Uma definição não estreita nem sectária, que é capaz de compreender as inúmeras formas diferentes em que os cineclubes se constituem na realidade, sem reduzi-las a uma receita dogmática. E que comporta uma compreensão do papel estratégico que têm os cineclubes, sua função histórica, política, social e cultural.
Cineclube, portanto, é uma forma de organização do público que visa resgatar à ideologia dominante - organizada e expressa pela forma tradicional do cinema comercial - sua influência de dominação, constituindo-se como uma instituição valorativa, de hegemonia, a serviço das classes populares, forjando, desde já a democracia na organização do processo de comunicação. Construindo, desde já, uma nova relação entre o público e o cinema, e um novo cinema, que advém exatamente dessa nova relação do público com a arte.
Compreender o cineclube, vale dizer, o cineclubismo, principalmente a partir da sua evolução histórica, é perceber que ele é também um movimento em devir dialético. Nesse sentido, mesmo hoje a gente pode observar muitas das formas de cineclube que foram, em outras épocas, as formas mais comuns, as formas dominantes daquele tempo. E desde as formas mais "primitivas", menos conscientes do seu papel histórico e cultural, os cineclubes já continham dentro de si as contradições que os fazem evoluir no sentido de realizar plenamente sua condição de contra-instituição, de aparato social não mais de dominação ideológica, mas de realização integral do conhecimento na relação democrática do público com a obra audiovisual.
Os primeiros cineclubes surgiram, no final da segunda década do século passado, como uma reação à excessiva padronização que a monopolização do cinema instituiu. Contudo, já nasceram como uma organização sem fins lucrativos - o que os separava radicalmente dos valores de mercado -, já nasceram baseados numa estrutura coletiva e democrática e já nasceram com uma clara disposição de se contrapor ao poder monopolizado e alienador do cinema comercial, valorizando as obras que não encontravam distribuição no mercado comercial ou que eram alijadas por motivos estéticos, políticos, etc. Os cineclubes nasceram como forma de organização do público.
Dessas características de todos os cineclubes: a econômica, que os distingue da iniciativa capitalista; a política, que os organiza de maneira democrática, e a ideológica, mais variável, mas que sempre os coloca fora ou contra os poderes econômicos ou políticos, decorre o caráter dialético da estrutura do cineclubismo, que sempre os impulsiona a resolver suas contradições. É claro que isso nem sempre acontece, que freqüentemente os cineclubes nem sequer consolidam a sua organização interna de maneira a consagrar essa característica democrática. Mas, no transcorrer da sua história, a maioria dos cineclubes - e o movimento cineclubista, enquanto tendência histórica e social - obedeceu a essa progressão, em que as formas mais avançadas foram superando as mais atrasadas. O cineclubismo se torna cada vez mais democrático e popular.
Por isso, hoje, quando o modelo mundial de cinema, determinado por Hollywwod, exclui a quase totalidade da população[3], ou relega ao novo proletariado do conhecimento um consumo de segunda classe, os cineclubes aparecem como a opção possível para a generalização do acesso ao audovisual e a democratização mais profunda da relação entre o público e o processo de comunicação de informação, conhecimento e cultura.

[1] Filippo M. De Sanctis, Fabio Masala e outros.
[2] Sobre a questão ver: Gruppi, Luciano – O Conceito de Hegemonmia em Gramsci – Edições Graal – Rio de Janeiro, 1978, ou Althusser, Louis – Aparelhos Ideológicos de Estado – Edições Graal – Rio de Janeiro, 1985
[3] No Brasil, como em outros países subdesenvolvidos, menos de 10% da população têm acesso ao cinema. Todos os indicadores sociais referentes à cultura são inferiores a esse percentual: teatros, bibliotecas, espetáculos, etc. Apenas a televisão chamada de “aberta” é acessível ao conjunto da população