quarta-feira, 21 de julho de 2010


Tarefas dos cineclubes brasileiros
na mudança do modelo de cinema



”Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário. Não seria demasiado insistir sobre essa ideia numa época em que o entusiasmo pelas formas mais limitadas da ação prática aparece acompanhado pela propaganda em voga do oportunismo”
Lenin. V.I. Que fazer?

Apresentação
No devir das coisas, 2010 aparece como um ano especialmente significativo. Para o País e para os cineclubes, que partilham mais de uma coincidência. É ano de eleições majoritárias nacionais e ano de eleições nacionais no movimento cineclubista. Um momento especial para o Brasil, que ensaia passos de potência intermediária no baile das nações, consolidando sua economia e promovendo uma certa redistribuição da renda nacional. Momento que também se aparenta decisivo para os cineclubes, envolvidos num extenso programa de distribuição de equipamentos, que parece dar origem, da noite para o dia, a centenas de cineclubes e a um campo relativamente amplo de exibição para uma produção independente das relações tradicionais do mercado.

Mas, em outro paralelo, parece que não se trata apenas do Brasil, mas da “ordem mundial”, de impasses decisivos da economia capitalista nos centros tradicionais de decisão e de uma possível nova etapa da chamada globalização, em que entram em campo os times das nações – como essa grife dos BRICs, mas não só estes - que constituem a grande maioria da população mundial, com perspectivas necessariamente diferentes, pois que atendem a outros, “novos” interesses. No plano do cineclubismo, a questão principal também talvez não esteja em um programa do ministério da Cultura ou mesmo no aumento do número de cineclubes, mas numa crise muito mais ampla e essencial do próprio modelo da “indústria” do audiovisual no Brasil – e do dispositivo mediático no mundo.

Este texto pretende examinar estas questões, no quadro das decisões políticas que os cineclubes brasileiros deverão fazer por ocasião da 28ª. Jornada Nacional de Cineclubes. Mas, independentemente dos resultados dessa Jornada, penso que estas reflexões podem ter validade e utilidade para a prática mais geral e a médio prazo de cada cineclube. Ou, pelo menos, para os cineclubes que se identificam com a idéia e o papel de organização e representação dos interesses do público, das grandes maiorias do público. E que reconhecem nesses interesses a necessidade de uma profunda e radical transformação do modelo de cinema hegemônico, que exclui a população, marginaliza a criação e impõe ideologias e comportamentos de subordinação e submissão. Os cineclubes que querem mudar o mundo.

Cultura (e) política
Cada vez mais o Brasil se afirma no contexto internacional – e toma consciência de sua importância crescente. As reformas, fundamentalmente do governo Lula, permitiram uma certa estabilidade, crescimento e, mais importante, distribuição de renda que, lentamente, vão mostrando seus resultados, extremamente importantes para a maioria da população. Essas reformas não deixarão de ter reflexos também no modelo vigente de cinema – e vice-versa.

No plano político institucional, essas reformas se apóiam numa aliança de classes tão ampla que se tornou praticamente absoluta (1). O presidente Lula, com justiça, tem índices de aprovação extraordinários, e nenhuma composição política questiona essencialmente o projeto de desenvolvimento adotado. Parece que o Brasil vive uma etapa avançada da sua revolução burguesa incomum, pacífica, negociada, de cima para baixo e até aqui sempre inacabada. É um momento particularmente feliz da consolidação do capitalismo brasileiro moderno (e esse processo tem mais de uma semelhança com a evolução do cineclubismo no País).

Esse “consenso”, no entanto, tem articulações mais ou menos precisas conforme o momento político, as áreas sociais e/ou econômicas, as articulações das classes sociais. Por isso, a mudança de governo representa mudanças importantes e, mesmo dentro de uma mesma aliança eleitoral, recomposições que podem afetar profundamente diferentes setores. A “situação” (PT- PMDB e mais de uma dezena de partidos) tem uma composição mais popular e uma vocação reformista no campo social muito mais pronunciada. A oposição principal (PSDB-DEM-PPS) é mais “burguesa” e, num certo sentido, mais “moderna” - em comparação, por exemplo, com os elementos mais conservadores da aliança governamental - e menos sensível às questões sociais. Além dessas diferenças, que podem representar mudanças fundamentais no destino de milhões de famílias num país como o Brasil, dentro de cada “aliança” disputa-se e distribuem-se setores, ministérios, empresas públicas, programas e ações governamentais que também influenciam, à vezes de maneira definitiva, o desenvolvimento de setores, regiões, populações inteiras.

Mas nestas eleições, como em um futuro visível, não se questiona essencialmente o modelo econômico ou as relações sociais. Existe um consenso no sentido da reforma, do aperfeiçoamento do statu quo.

Cinema brasileiro, metáfora de classe
No segmento do cinema, essa composição tem uma personalidade muito própria. Nos últimos anos houve mudanças muito importantes na estrutura “representativa” do cinema no Brasil. A tentativa de criação da Ancinav, há uns cinco anos, provocou o fim de uma espécie de “modelo neoliberal”, digamos, em que todas as entidades do cinema participavam do Congresso Brasileiro do Cinema. A política do governo Lula – ou melhor, da composição tripartidária que dirige o ministério da Cultura - de tentar estabelecer regulamentações para todo o audiovisual, levou ao racha: saíram do CBC as empresas distribuidoras (Hollywood e coadjuvantes), os exibidores e os produtores de longa metragem que fazem parte desse concerto (ou acerto, em que levam 10% do mercado desde que associados ao sistema). A “economia”(2) do cinema saiu do Congresso Brasileiro de Cinema.

O modelo do cinema (3)continua igual, mas adaptou-se ao caráter contraditório deste governo. Por um lado o “cinema”, a economia, o mercado, continuam onde sempre estiveram, nas mãos dos mesmos: a exibição associada/dominada pela distribuição, sob controle de Hollywood. A novidade é a adesão dessa parcela importante da produção. E a essa ótica juntou-se a ANCINE (agência regulamentadora do setor). Esse é, então, o lado da “gente grande”. Do outro lado, reunindo as bases reformistas do governo (PT e PC do B, mais PV(4)), ficou o MINC, e um Congresso Brasileiro de Cinema fragilizado, mas sólido nos ambientes predominantemente de origem regional e principalmente abedista(5) (o que hoje se chama de “área cultural” do cinema – um eufemismo que mistura todas as ações que não encontram espaço no modelo comercial hegemônico), aos quais também se juntou a entidade dos cineclubes, o CNC, que antes “não existia” nesse nível. O público mesmo continua sem representação.

O exercício metafórico pode não ser exato, mas até que se aplica bem: poderíamos dizer que no cinema brasileiro existe uma espécie de burguesia econômica e institucional, representada por essa aliança “Ancine/longa-metragem-que-é-exibido”, e há uma pequena-burguesia, de diretores não cariocas (injustiça minha), curta-metragistas, professores e estudantes de cinema, cineclubedistas, produtores amadores e profissionais de projetos tipo Lei Rouanet e editais, que tem espaços e assentos no Minc (a não ser quando a Ancine manda tirar, como aconteceu recentemente com o secretário do Audiovisual). Finalmente, tem um proletariado, que não tem assento em lugar nenhum (só cadeirinhas de plástico ao relento em suas comunidades) e recebe “bolsa-cine+cultura”. É o público das comunidades, dos cineclubes, que são vocacionados para, mas certamente não representam efetivamente os 92% que não vão ao cinema - aliás, que não vão a quase lugar nenhum.

Gosto dessa metáfora. Porque ela deve vista como não excluindo a importância do cinema brasileiro de longa metragem, do seu espaço no nosso imaginário e na identidade. Ser contrário à burguesia não é ignorar sua contribuição, seu lugar no processo civilizatório. Da mesma forma, ser crítico em relação à pequena-burguesia não pode levar a desconsiderar seu papel deveras importante, pois é ela que reivindicou (e reivindica) e conseguiu em grande parte, uma importante ampliação e regionalização da produção de curtas, sem esquecer essa modesta, mas assim mesmo significativa, política de ampliação da exibição. Mas o público, que avançou um tiquinho graças a esses caminhos, ainda quase não tem voz, e seu projeto, para o conjunto do cinema brasileiro, ainda está para efetivamente ser construído e apresentado.

Teoria ou euforia
O movimento cineclubista parece passar por um momento de crescimento e reorganização; no Brasil, esse sentimento beira a euforia. Mas nossa história é, na verdade, feita de momentos mais ou menos brilhantes entremeados de silêncios bem mais longos.

No plano mundial, a década de 20 foi marcada por uma mobilização enorme do público em torno dos cineclubes, mergulhada num caldo de renovação estética, de influxo revolucionário, de resistência política e ideológica. Os anos 30 e 40, contudo, viram a vitória do modelo hollywoodiano de cinema e a dissolução de um movimento internacional cineclubista operário adoecido com o stalinismo e assassinado pela guerra. Os anos 50 e 60 trouxeram um novo fôlego de democracia associada à criatividade: delas nasceu um novo ciclo internacional do cineclubismo, houve a criação da FICC, o neo-realismo e os novos cinemas, um pouco em toda parte. O restante do século, contudo, assistiu a uma certa cristalização do cineclubismo e, finalmente, o declínio do associativismo, acompanhados pela crescente influência do liberalismo e do individualismo.

No Brasil, resumidamente, tivemos um tardio ciclo virtuoso nos anos 50, com a expansão da cinefilia, ou cultura cinematográfica, impulsionada pela geração de Paulo Emílio Salles Gomes, ao lado do estímulo da Igreja à democratização e moralização do cinema através dos cineclubes. Esta última entrou em estágio crítico com a criação da CNBB e o abandono da política de valorização do cinema (1962); a primeira faleceu não tanto pela repressão – que não pode, porém, ser ignorada – como pela perplexidade e incapacidade de propor novas perspectivas. O ciclo positivo que vai do início dos anos 70 à metade dos 80 também foi seguido pela atomização e desorganização do movimento por mais duas décadas.

O que acontece hoje no Brasil – e potencialmente em todo o mundo – vai permanecer, consolidar-se, frutificar? Ou vai ser mais um soluço histórico, um breve momento de emergência de um movimento social – supostamente do público organizado – que não consegue se consolidar, ainda que também nunca desapareça, vegetando, esporo incubado, por longos períodos, em iniciativas tão isoladas quanto ricas: organismos unicelulares que podem sempre voltar a germinar, mas incapazes de estabelecer uma cultura própria e sólida e, dessa base, evoluir?

Teoria e prática

Acredito que o fator desagregador principal do cineclubismo, a fraqueza que quebra o elã de seus impulsos formidáveis mas episódicos, a força determinante a impedir o público de se organizar de forma estável e estabelecer uma prática transformadora permanente tem sido sua incapacidade de formular uma teoria própria, uma alternativa histórica de emancipação. Penso também que, desde os anos 70 e 80 essa teoria se esboçava (6) – e a Carta de Tabor dos Direitos do Público (1987) é a expressão política mais visível dessa formulação -, mas o movimento cineclubista real ainda não teve forças para consolidá-la.

Será que temos hoje um movimento nacional, ancorado solidamente num público organizado em suas – as mais diversas – comunidades, consciente e reivindicativo, ou apenas uma multiplicação artificial de pontos de exibição estimulada de fora das comunidades que se mantêm platéias, por um setor da produção que não encontra outro canal para ser exibido? É neste impasse que possivelmente se inscrevem as opções políticas que se colocam agora para os cineclubes, menos na Jornada – que me parece já mais ou menos decidida (7) –, mas nas práticas de cada cineclube e na sua capacidade de se articular como um movimento nacional e popular que realmente represente um segmento importante do público, e seja capaz de expressar sua visão do mundo. Ou não.

A citação de Lenin que serve de epígrafe para este texto remete a uma realidade que, em meio ao ciclo de crescimento, pela imposição de um “silêncio político” combinado ao acerto em camarilha, pela agitação de slogans desprovidos de seus conteúdos (os direitos do público), contamina o movimento cineclubista brasileiro, subordinando ideologicamente sua visão, sua prática e seu público à produção, reificando seus direitos como mera acessibilidade – isto é, formação de platéias consumidoras – e reduzindo a política à sua expressão menor, às práticas imediatas, aos acertos de gabinete, o que conduziu ao atrelamento, dependência e virtual submissão a certos aparatos governamentais. O cineclubismo brasileiro está a se constituir não em real forma de organização do público, mas em “meio de comunicação”, correia de transmissão, aparato de difusão de conteúdos, a serviço do Estado e da produção(8).

O cineclubismo brasileiro, em seu topo, defende a circulação de filmes (organizada pelo Estado), mas não propõe a sustentabilidade dos cineclubes e/ou sua participação nos mecanismos de decisão e gestão desse Estado; se propõe a carne-de-canhão contra o ECAD - ajudando setores poderosos da economia -, quer mobilizar os cineclubes até para a aprovação da lei de TV por assinatura (!), mas não participa absolutamente da discussão de programas de salas de projeção populares; estimula a produção de relatórios de exibição (futuros mecanismos de remuneração da produção) para instituições do governo, mas descura da sua própria distribuidora de filmes, isto é, da organização autônoma do movimento (apesar de ter uma Dinafilme em sua história); divulga sem avaliação anúncios das agências governamentais, mas não cuida de uma publicação própria (como exigem os estatutos da entidade nacional), entre tantas questões... O “cineclubismo” participa de múltiplos eventos oficiais, mas não propicia encontros ou discussões entre os cineclubes; nas raras vezes que o faz, não disponibiliza os debates ou sequer suas conclusões. Muitas federações regionais praticamente não existem. Há uma insidiosa fragilidade escondida sob um manto de unanimidade festiva e de “conquistas” duvidosas.

Prática e teoria

Os conceitos de cineclube e de público, e sua relação com o universo audiovisual nunca foram, na verdade, discutidos sob a ótica apenas esboçada por alguns teóricos cineclubistas (9), a partir dos anos 70. Ótica mais ou menos expressa na Carta de Tabor, aprovada por um movimento cineclubista que não é exatamente o de hoje, nem no Brasil (que não estava presente) nem no mundo: a FICC tem hoje menos da metade de países membros que naquela assembléia de 1987.

Mas essa visão incipiente é (d)a essência do cineclubismo: aponta para o estudo, a crítica, a recuperação e a construção de uma concepção própria e nova do cinema, onde o público, contextualizado histórica, social e politicamente, é o elemento determinante (e não a produção, a linguagem, o texto ou mesmo o espectador abstrato da psicanálise ou do marketing). E do cineclubismo como forma de organização desse público, construída historicamente para se constituir numa instituição privada de hegemonia, como disse Gramsci: numa ferramenta de construção de uma alternativa histórica de emancipação.
Essa trajetória, sua dinâmica e conteúdo, está praticamente por ser edificada no plano teórico. Na prática, cineclubes em todo o mundo a constroem, de forma contraditória, desigual, no mais das vezes precária e efêmera. Mas com uma riqueza que nenhuma outra instituição cinematográfica – e talvez cultural – pode igualar. Sem, no entanto, consolidá-la (10).

Essa diversidade inesgotável de formas dentro de um mesmo movimento, instituição e conceito (característica básica do cineclube), essa adaptabilidade a diferentes momentos, conjunturas e mesmo dispositivos tecnológicos, dentro da modernidade e do capitalismo, aponta para o entendimento do público como força essencial de transformação de um modo de produção em que a informação, o conhecimento e o entretenimento – em duas palavras, a cultura (e/ou a indústria) audiovisual - se tornaram elementos centrais e fundamentais. E para a compreensão do cineclube como arquétipo de organização do público audiovisual.

A precariedade física e moral, prática e teórica, ou vice-versa, é o espectro que ronda o cineclubismo, em época de aparente vigor, mas na ausência de uma reflexão que permita compreender e consolidar suas incríveis potencialidades. Sem teoria não há movimento.

O público como classe
Há várias abordagens teóricas ou acadêmicas para o conceito de público (11), mas aqui não é o lugar nem o momento de examiná-las. Vamos resumir enormemente a que corresponde à experiência histórica cineclubista e embasa nossa proposta para o movimento:

O público moderno – o conjunto das relações interativas entre participantes (12) e as mensagens culturais a eles dirigidas - é um conceito estabelecido a partir da constituição do público de cinema, fundamentalmente no início do século XX, que lhe serve de paradigma. O público de cinema se constituiu através de um processo contraditório de luta pela hegemonia no controle dos meios de produção e circulação da reprodução simbólica da realidade, através do meio recém descoberto - as imagens em movimento -, que permitia não apenas um grau superior e inédito de re-produção da realidade, mas que tinha na reprodutibilidade mesma sua condição essencial de existência e de expressão (13). Inicialmente constituído pelas classes trabalhadoras, pelas ondas de imigrantes (nos EUA, principalmente) e pela assimilação de mulheres e crianças proletárias, paulatinamente (numa luta de classes acirrada, e documentada (14)) o dispositivo do cinema incorporou os setores médios, neutralizou ou domesticou as massas e suas vanguardas, estabeleceu e consolidou um modelo de recepção – isto é, de público – espectatorial, ordeiro e submisso, e uma linguagem ideologicamente alinhada, linear e mistificante. Formadas a partir desse modelo cinematográfico, as audiências das posteriores formas e linguagens de comunicação de massa (rádio, televisão, espetáculos em geral) se moldaram nos mesmos princípios: espectatorialidade, linguagem “clássica”, etc.

A marcada evolução do capitalismo neste último século implicou numa estruturação diferente das classes e segmentos sociais em relação à conceituação com que trabalhavam os primeiros teóricos socialistas. Com a diminuição da importância relativa do segmento fabril da classe operária, a extensão das relações corporativas ao campo, o aumento expressivo do trabalho no setor de serviços, muitos se perguntam sobre a constituição efetiva do proletariado contemporâneo e seu papel na emancipação do homem. Essa despersonalização e assimilação em grande escala tem muito em comum justamente com o processo de formação do público moderno.

Outra característica da sociedade contemporânea é a sua “mediatização” e a constituição dos espaços mediáticos (essencialmente audiovisualizados) como campo privilegiado do embate simultaneamente econômico, político e ideológico. Ora, nesse sentido, o público – basicamente o público do audiovisual, que corresponde à imensa maioria da população (ou, pelo menos, à parcela desta que participa do espaço midiático e da mediação social e política) – é potencialmente a expressão do proletariado moderno (15).

As classes sociais não se definem (exceto na visão econômica burguesa) pelo seu perfil estritamente econômico, por sua renda ou por seus haveres, mas pelo lugar que ocupam na reprodução das relações de produção. Numa sociedade em que os meios de representação simbólica se tornaram centrais na reprodução do modo de vida e das relações sociais, o proletariado moderno não se define apenas por não possuir os meios de produção, mas também especificamente por não possuir os meios de produção simbólica; não apenas por ter somente sua força de trabalho para negociar no mercado mas, igualmente e complementarmente, sua atenção, sua subjetividade (16).

As classes sociais ou blocos de classes são sujeitos sociais que se defrontam com outras classes ou blocos de classes. Nesse conflito, estabelecem sua hegemonia e/ou se definem como alternativa histórica. Ser capaz de formular uma alternativa histórica é o que define o caráter emancipador do proletariado, pois uma alternativa histórica é necessariamente revolucionária (17).

Ser capaz de formular uma alternativa histórica, expressar uma visão de mundo própria, indica também a construção de uma subjetividade consciente: a consciência de classe. A luta de classes contemporânea se dá, em grande parte, na disputa pela apropriação dos sentidos das coisas. A reificação, ideologização e incorporação da atenção como fator de reprodução do mundo versus a subjetividade autoconsciente como ferramenta de construção de uma alternativa histórica. O audiovisual é hoje o principal campo e instrumento de expressão dessa disputa ideológica.

O Cineclube como instituição do público

Os cineclubes têm origem nesse processo contraditório de formação do público, na dinâmica de recepção, resistência e apropriação do “cinema” em formação. Inicialmente introduzidaq como ferramenta de discussão, na tradição das conferências e debates em agremiações populares (18), que vêm desde a série das lanternas mágicas, a projeção foi ocupando cada vez mais o centro dessas atividades e, paulatinamente, se tornando o objeto mesmo do debate. Como já escrevi em outra parte, em 1913 surge “a primeira clara formulação de um objetivo de organização do público, que compreende o enfrentamento da questão central da apropriação do imaginário pelo cinema comercial... É a primeira experiência consciente de produção coletiva, do público como autor, com vistas à superação desse estado de coisas” (19).

Ao longo da década seguinte, foi se consolidando o que Gauthier (20) chama de protocolo cinéfilo, um conjunto de características em que reconhecemos vários elementos mais ou menos gerais e/ou permanentes da atividade cineclubista: associativismo, sistematicidade das sessões, debate, publicações, luta contra a censura, defesa do cinema independente (em vários sentidos: econômico, estilístico, etc), crítica da alienação e da dominação e, finalmente, produção de filmes que refletem esses princípios. Assim, a forma institucional derivada diretamente das organizações populares, o associativismo, adaptando-se a algumas características de sua atividade-fim, o cinema, consolidou-se internacionalmente. Os cineclubes brasileiros, alemães ou burquinabês têm a mesma constituição institucional que, por sua vez, não difere essencialmente do fomato do Cinéma du Peuple, de 1913 e, especialmente, do movimento de cineclubes dos anos 20.

Assim como o público do cinema constituiu-se como paradigma do público moderno em geral, o cineclube é o modelo básico de organização desse público. Por razões que caberia estudar melhor, o leitor, o público de teatro, de dança ou de qualquer outra linguagem e atividade artística, não consolidou uma forma institucional geral e permanente (21). Como os sindicatos, em relação às categorias de trabalhadores, os cineclubes, desta forma, corporificam um paradigma da (e para a) organização do público, em suas diferentes comunidades. Dos elementos essenciais de sua forma institucional podem ou devem derivar, se adaptar (como já acontece com os cineclubes nos diversos momentos, lugares e dispositivos tecnológicos), as características de outras formas de organização do público: associativismo democrático, ausência de finalidade lucrativa, compromisso ético (22). Particularmente grave, importante e urgente, é o fato de que os cineclubes, mesmo os que mais organicamente representam suas comunidades, ainda ocupam e exercem um papel extremamente reduzido em relação ao público audiovisual, já que não existem, praticamente, formas associativas em torno da recepção do cinema comercial e da televisão. Formas coletivas – não necessariamente associativas – embrionárias engatinham na rede cibernética do planeta.

O cinema morreu, viva o cinema
Além de, fundamentalmente, revelar o processo de formação e a imbricação do cinema e do cineclubismo, o destaque que escolhi para a abordagem histórica neste texto procura salientar pelo menos dois aspectos que julgo importantes para a compreensão e definição de algumas das tarefas que se colocam para os cineclubes na atualidade. Por um lado, as semelhanças, ou melhor, as associações possíveis entre o processo de desenvolvimento do “primeiro cinema”, à procura da definição e controle do seu mercado pela domesticação da recepção, e os caminhos do audiovisual hoje. Por outro lado, a criação da instituição cineclube e de um protocolo cineclubista de experiências de apropriação crítica do cinema, hoje bastante “desprestigiado” diante de uma vaga ideológica liberal e paternalista que procura, principalmente, impor o empreendedorismo como opção para o associativismo democrático e a dependência do Estado ou da empresa em detrimento da organização popular.

Como diz Lacasse (23), o cinema não nasceu mudo, mas em meio a narradores, explicadores, conferencistas – e, acrescento eu, vaias, conversas, manifestações organizadas -, além de uma grande intermedialidade com outras formas de expressão, como o canto, o teatro, a dança, etc. O público é que foi silenciado, à medida que o cinema estabelecia uma narrativa hegemônica. Da relação interativa do começo do “cinema”, entre o público e o filme, só o cineclube preservou não apenas a oralidade (o debate), mas todo um dispositivo ou protocolo de ações de apropriação crítica, condição essencial para a superação da perspectiva de dominação do cinema comercial e para a construção de uma visão própria e crítica, indispensável para a edificação de outro cinema: o cinema do público.

O que importa essencialmente na relação entre o público e o cinema, são as condições de apropriação crítica, e não o mero acesso aos filmes (condição necessária mas insuficiente) que, por si, corresponde apenas à necessidade de criação de platéias ou, em uma palavra: mercado. A questão da apropriação de conteúdos e sentidos, com vias ao desenvolvimento da sua capacidade de expressão, é a tarefa mais essencial que se coloca hoje, e desde sempre, para o público. E sua ferramenta para tal é o cineclube.
O dispositivo ou a instituição cinematográfica que se consolidou principalmente ao final dos anos 20 e com a implantação do som, e que foi objeto da maior parte dos estudos cinematográficos até hoje, morreu. O cinema “literário”, linear, cuja recepção se dava na tela do cinema, com a atenção exclusiva do espectador, não existe mais. A relação preponderante não é mais a do cinema, mas do audiovisual – como conjunto de formas de difusão e recepção, muitas ainda em desenvolvimento. De fato, ao tentar rentabilizar e controlar essas formas de difusão e recepção, que são ao mesmo tempo segmentos e mercados, o audiovisual recoloca várias questões que, de forma semelhante, existiram nos primeiros tempos do “cinema”: intermedialidade, direitos patrimoniais, etc. E, inclusive, o lugar e o papel (e a linguagem (24)) do cinema “em sala”.

É uma luta de classes, entre o público e as corporações planetárias de comunicação e entretenimento, que tem mais de um aspecto em comum com as batalhas que aconteceram nos nickelodeons e nos primeiros cineclubes. A mais visível dessas batalhas é a disposição do público, em todo o mundo, de acessar, copiar e interagir livremente com conteúdos audiovisuais, e as tentativas de repressão e controle dessas ações por parte das empresas de “comunicação”, entidades de classe patronais e organismos governamentais.

Essa disputa revela a existência de fragilidades e oportunidades, geradas inclusive nas tentativas de compreensão e controle dos novos mercados. Um exemplo bem claro é o do abandono relativo do mercado exibidor. Na procura da rentabilidade maior entre os segmentos do público de cinema de maior poder aquisitivo, assim como pelo controle da articulação entre os diferentes mercados (ou “janelas”: do DVD, tevê a cabo, tevê aberta, etc), o cinema hoje, particularmente (mas não exclusivamente) nos países menos desenvolvidos, abandonou a grande maioria da população. Portanto, outra tarefa fundamental para os cineclubes é a ocupação e a organização desse espaço audiovisual – que no Brasil é da ordem de 90% da população – em função dos interesses e das necessidades do público. O cinema morreu, viva o novo cinema!

Ocupar e reorganizar o espaço audiovisual

Essa questão demanda amplas discussões e o espaço da Jornada é um dos mais importantes - ainda que apenas politicamente, pois a reflexão sobre esta questão deve ser sistemática e permanente, possivelmente através de seminários e textos que extrapolam um congresso eleitoral. Mas para a tomada de posição, para o estabelecimento de um programa básico de ação e um compromisso da direção eleita, a Jornada é a ocasião mais adequada. Para isso, mesmo que a discussão seja bem mais ampla, alguns pressupostos devem ser definidos inicialmente – e os incluo entre estas tarefas que estou elencando. Essas tarefas, como propõe o título deste artigo, cabem fundamentalmente aos cineclubes, na (construção de) sua relação com seu público. E às suas entidades representativas como expressão desse público em movimento.

Se o cineclube é a instituição do público, é preciso assumir essa condição em sua plenitude. Ou seja, o cineclube é uma instituição fundamental da sociedade democrática, não é uma atividade “filantrópica”, “experimental”, “juvenil”, “amadora” (as aspas indicam o emprego de um sentido pejorativo, de coisa de caráter especial, carente ou exótica, e principalmente desimportante) que se inclua entre as ações de beneficência ou assistência social. Não, o público é a maioria absoluta da população, e é categoria central no processo social, para a reprodução ou para a transformação das relações sociais. A ação cineclubista é central e essencial para a sociedade audiovizualizada. Se o audiovisual é central no processo político e social contemporâneo, a instituição audiovisual do público tem que ocupar uma posição central na organização desse público. E na política pública, como na “política popular”, para o audiovosual.

O cineclube deve estar presente em todas as comunidades e ter organização e meios para cuidar dessa intermediação do público e do audiovisual. Em todas as cidades, em todos os bairros das cidades um pouco mais importantes, em todo tipo de aglomeração campesina, nas unidades industriais e comerciais importantes, nas escolas de todos os níveis e em todas as associações profissionais e organizações de interesses comuns deve se organizar um cineclube.

Esse processo, que é responsabilidade essencialmente do público, deve obrigatoriamente (por meio de lei e disposição orçamentária) ser reconhecido e estimulado pelo Estado, em todos os níveis (federal, estadual, municipal, e agências, organismos e programas estatais nos três níveis). De fato, sem querer prejudicar qualquer conquista já obtida pelos setores da produção, o investimento governamental na constituição de organizações do público audiovisual é a política mais consistente para a criação de um ciclo econômico sólido e efetivo para a produção e exibição da produção audiovisual. Portanto, esta é outra tarefa programática para o movimento cineclubista: preparar e reivindicar legislação e disposições orçamentárias de reconhecimento e apoio aos cineclubes. Neste quesito, inclui-se tratamento equivalente para a manutenção das entidades representativas dos cineclubes, como associações municipais, federações ou organizações equivalentes e confederações nacionais – tal como já acontece com as centrais sindicais, entidades estudantis, etc.

Mas, do reconhecimento de que cabe essencialmente ao público a responsabilidade de se organizar, decorre a compreensão de que esse processo não pode depender exclusivamente do poder público ou de qualquer outro poder. Assim, por princípio e de uma maneira geral, os cineclubes devem ser auto-sustentáveis, estruturados em função do apoio e da autoconsciência de suas comunidades, evidentemente em articulação com políticas públicas e/ou privadas de fomento, apoio e outros patrocínios. Sustentabilidade é sinônimo de independência; o contrário leva necessariamente à dependência e/ou subordinação.

No Brasil, particularmente – o que me parece claramente corolário da subordinação tratada mais atrás neste texto – elementos do protocolo cineclubista, justamente referentes à sustentabilidade de suas ações, caíram praticamente em desuso: a gestão de associados contribuintes (elemento, aliás, importante, senão essencial, na própria organização da democracia interna do cineclube); a cobrança de taxas de manutenção em suas atividades (até mesmo a contribuição voluntária, “passar o chapéu”, virou raridade); a promoção de ações de financiamento, como rifas, “bailinhos”, etc... Mesmo os cineclubes que já tenham apoios devem ter ou criar essa condição de independência, sob pena, justamente, de orientarem sua ação em função dos limites estabelecidos pelo “patrocinador”. E, convenhamos, os recursos hoje atribuídos aos cineclubes, seja pelo governo federal e por alguns poucos estados, são muito modestos e limitados.

Tarefas cotidianas e permanentes
Como instituição audiovisual da comunidade, ao cineclube se colocam inúmeras responsabilidades, na perspectiva de apropriação do imaginário coletivo – e em função das oportunidades históricas a que nos referimos. Cineclube não é apenas exibição de filmes (o que poderia colocá-lo muito próximo do mero formador de platéias), mas apropriação do audiovisual em todas as suas dimensões. Destas dimensões, saliento algumas de imediato que, na prática, se confundem e se completam:

1. A exibição como ato de cultura: o tratamento do cinema e das suas obras individuais como um valor artístico e cultural em si, permanente, não perecível. Como instrumento de formação: o filme como veículo transversal na abordagem de segmentos do conhecimento (o próprio cinema, literatura, história, geografia, dança, etc); na abordagem da experiência coletiva (saúde, civismo, segurança...), e na construção da identidade (autoconhecimento da vida comunitária, sua história, etc). Como instrumento de informação: o audiovisual – cinema, tevê, internet, etc - como mediação e socialização, a crítica da imprensa e da informação em geral. Como instrumento de intercâmbio com outras comunidades, de todo o mundo.

2. O debate como instrumento convivial de compreensão e formação, através do compartilhamento das experiências do público. O cineclube, a meu ver, não ensina nem “alfabetiza” o olhar. O público já nasceu na frente da televisão e se socializa principalmente através das mídias audiovisuais. O “debate” – inventivo, informal – propicia e favorece a troca de experiências pessoais e comunitárias com vistas ao reconhecimento e construção coletiva da visão de mundo, dos interesses e identidade do público. Assim como das subjetividades individuais dos participantes. Acredito que toda pretensão de “ensino” de como ver ou entender um filme, além de vã, é autoritária.

3. A atividade cineclubista como espaço de convivência e identidade. O cineclube precisa ter (quando possível, como meta) uma sede (25). Um espaço de projeção de qualidade, com conforto. Deve ter espaço de convívio (sala de estar, barzinho, para material de leitura, jogos, televisão, computador...) e de aprendizado (bibliofilmoteca-arquivo da comunidade, espaço de montagem e produção), promovendo festas, saraus, leituras, cursos, oficinas, etc. É inadmissível deixar passar os projetos de criação de salas populares da ANCINE como estão formulados, excluindo os cineclubes e reproduzindo o modelo comercial (mesmo no caso de uso de tecnologia digital), aliás inaplicável nas comunidades a que se destina, hipoteticamente, a maior parte desses programas. O Estado faz “consulta” pública para obter apoio e organiza programas e investimento sem consultar ninguém (exceto o capital)? O cineclube também precisa construir um espaço virtual de interação e convívio, que não exclui formas individualizadas de fruição audiovisual – mas interconectadas num nível de diálogo e compartilhamento da(s) experiência(s).

4. A atividade cineclubista como tessitura de relações e instituições comunitárias. O cineclube deve interagir (26) com as demais instituições e iniciativas importantes da comunidade, reforçando-se mutuamente nessa ação. A(s) escola(s) me parecem a(s) mais importante(s) dessas instituições, e a discussão dessa relação deve ser também objeto de um espaço na Jornada e de deliberações programáticas específicas (27). Outras iniciativas culturais também me parecem prioritárias, isto é, a sinergia com grupos de teatro, de dança, de leitura, etc, que existam ou possam ser incentivados na comunidade. Essas iniciativas e suas diferentes práticas e linguagens podem ser incorporadas nas atividades do cineclube em diferentes níveis Mas nenhum outro campo está excluído, a juízo da deliberação do cineclube: hospitais, igrejas, comércio, segurança... A organização de atividades voltadas para a organização e autoformação de segmentos das comunidades em que tais casos se aplicam, também é muito importante: crianças, jovens, mulheres, homens, certas faixas etárias, subgrupos de interesses: política, esporte, literatura, história do cinema... Cineclubinho, teleclube, videoclube, netclube, etc.

5. O cineclube como arquivo da comunidade. As cinematecas nacionais consolidaram como missão a preservação da memória audiovisual “nacional”. Isto significa preservar, a custos com que só o Estado pode arcar, prioritariamente os filmes “mais importantes” (sobretudo de longa-metragem) e outros documentos da produção audiovisual mais relevantes ou mais ameaçados. No entanto, atualmente a produção audiovisual cresce exponencialmente, e se alastra pela sociedade, em documentos locais, familiares, etc. Não há mais limite para essa documentação e memória da sociedade. Sua preservação em um único arquivo é impossível. Portanto, como instituição audiovisual da comunidade, deve caber ao cineclube (e para isso deve receber formação e recursos, em convênio com instituições públicas e privadas) a salvaguarda da memória e, consequentemente, a preservação da(s) identidade(s) da comunidade. Acrescente-se que a memória das comunidades, dos segmentos menos privilegiados da população não é, hoje, valorizada e preservada, e que isso é igualmente parte fundamental do processo de apropriação do imaginário e autoconsciência popular. E vale lembrar que a idéia de colecionar e preservar é essencialmente de origem cineclubista: praticamente todas as cinematecas do mundo evoluíram a partir de cineclubes. Evidentemente, na medida do possível, esse arquivo deve ser disponibilizado para a comunidade, na sede do cineclube e através de empréstimo (com taxa de manutenção, lembro).

6. O cineclube como produtor coletivo de um cinema do público. Os filmes têm como produtor (no sentido de quem decide, possibilita e organiza – todas as três operações - a realização de um filme): o grande capital – no modelo Hollywood, Globofilmes, etc - ou o empreendedor mais ou menos independente (frequentemente o chamado cinema de autor), além do Estado, quando este exerce um direcionamento artístico e/ou ideológico - senão caímos nas alternativas anteriores. O que chamo de cinema do público é quando essa tríplice responsabilidade recai sobre a instituição da comunidade, o coletivo do cineclube. A criação de um novo cinema, ancorado numa organização alternativa (no sentido de alternativa histórica a que me referi antes) da economia do ciclo produção-distribuição-exibição (ou consumo) tem por base o cineclube, o público organizado. Nesse sentido, a produção é igualmente uma meta fundamental para os cineclubes. Na acepção de instituição da comunidade (não importando, portanto, se o roteiro ou a direção são individuais), os projetos e os esforços são decididos de forma coletiva e democrática, e tendem a responder (não necessariamente de maneira estrita ou mecânica) aos interesses e necessidades da comunidade. Com a facilidade relativa de produção que existe atualmente, a produção de um cineclube pode evoluir da documentação da história e da vida da comunidade em todos os níveis (elemento fundamental na recuperação da memória e construção da identidade da comunidade), até produções mais complexas e ambiciosas, ficcionais ou não.

Tarefas do movimento
A produção, como é claramente um momento da atividade audiovisual, talvez mais que outros aspectos da prática cineclubista, demonstra a necessidade de existência de uma articulação entre os cineclubes, de um movimento em nível local, nacional e mundial. Que é, por sua vez, a condição da expressão real de uma visão de mundo emancipadora e da construção de uma alternativa histórica democrática.

Movimento se opõe, em certa medida, à idéia de rede como forma e objetivo de organização. Não me interesso pela exegese semântica aqui, mas penso que movimento demanda sentido e direção, enquanto que a idéia de rede pode implicar apenas na tessitura de relações que se “amarram” em si mesmas. É evidente que as redes virtuais existentes constituem um instrumento fundamental de relacionamento entre as pessoas e organizações – elas são indispensáveis. Mas é importante não ficar no plano do mero contato sem conseqüência, não cair na interrupção do diálogo propiciado pela falta de comprometimento (que é facilitadora em outros níveis) do meio. Além das redes de intercâmbio, os cineclubes precisam de outros instrumentos de participação e mobilização, se querem efetivamente representar o público e se pretendem participar e influir no desenvolvimento do audiovisual no Brasil. Não basta tecer relações, é preciso transformá-las em energia e direção de transformação (e/ou resistência).

As listas de cineclubes, por exemplo – especialmente a lista nacional, “cncdialogo” -, têm exercido um papel fundamental da divulgação dos cineclubes e do movimento, favorecem a circulação de informações, “dicas” de programação e de contatos. Eventualmente serviram para uma mobilização específica: o abaixo-assinado. Mas me parece evidente que têm se mostrado ineficientes na promoção da discussão de questões importantes – o debate morre depois de duas ou três manifestações – da mesma forma que para a organização de certas ações solidárias – como nos casos de proibição de eventos e outras pressões exercidas sobre cineclubes: o apoio dos congêneres falece depois de poucas adesões, expondo mais a fraqueza que a solidariedade cineclubista. Também como elemento de democracia interna, a lista não é eficiente, mas aqui, creio que a responsabilidade cabe mais à direção do CNC. A entidade não se relaciona organicamente com o movimento, publicando informes sem sistematicidade, de importância variável e mesmo questionável. Informações sobre deliberações correntes da diretoria são escassas; resultados e deliberações de eventos importantes (como a Pré-Jornada) praticamente não são divulgados; as listas também não servem muito – ou só discriminatoriamente – para esclarecimento e diálogo entre os cineclubes e sua entidade nacional.

De qualquer forma, o que releva aqui é a necessidade de elementos complementares e específicos de reflexão, debate e informação do movimento, o que implica democracia e capacidade de elaboração teórico-prática, de mobilização e intervenção.

1. Publicações – Tal como obriga o artigo 5º. dos estatutos do CNC, o movimento necessita de uma publicação periódica de informação e debate, aberta a todos os cineclubes. O estatuto distingue claramente publicação impressa e virtual, e exige ambas. Por ser disposição estatutária nem precisaria ser repetida aqui, mas... A própria experiência parece demonstrar que o caráter menos transitório da reflexão impressa, o compromisso aparentemente mais definitivo no papel, assim como as faltas e ausências melhor notadas numa totalidade editorial, são uma necessidade premente para o movimento. Isso, sem mencionar a interação com o restante da sociedade: movimentos sociais, entidades de cinema, governos, etc. A Jornada deve, até para fazer cumprir os estatutos, debater e deliberar sobre formato editorial, periodicidade, etc, de pelo menos uma publicação oficial do movimento. Tradicionalmente era o Boletim Cineclube.

O movimento também precisa editar um Manual do Cineclube. Esse assunto tramita dentro da diretoria do CNC desde que o manual preparado para as oficinas do programa Cine+Cultura, em 2008, foi censurado. O projeto do Pontão Cineclubista (que vai sair a qualquer momento...) prevê sua edição. Caso isso não se ocorra, também creio que a viabilização de uma publicação desse tipo (28) deva fazer parte do programa para a gestão 2010-2012 do CNC. E a publicação de outras versões, regionais, locais ou que reflitam concepções diferentes, devem ser avaliadas pelas outras instâncias do movimento cineclubista.

2. Encontros, seminários – Na maior parte da história do cineclubismo brasileiro a Jornada Nacional foi anual. Diante da dificuldade de obter recursos, a direção do CNC propôs à assembléia nacional do cineclubes e fez aprovar a bianualidade do Encontro, alternando-se, ano sim, ano não, com a Pré-Jornada (que antes também era anual e ocorria seis meses antes, para preparar cada Jornada anual). Com isso, a primeira Pré-Jornada depois daquela deliberação foi um evento de grande participação, “uma verdadeira Jornada”, com mais de 60 cineclubes de todo o País. Na Pré-Jornada seguinte, porém, atendo-se às exigências mínimas dos estatutos, reuniram-se apenas alguns delegados formais, e suas deliberações não foram divulgadas (29). Ora, durante os governos dos generais Médici, Geisel e Figueiredo, por exemplo, as Jornadas foram anuais; a necessidade de reunião dos cineclubes não deve ser definida pelo maior ou menor acesso a patrocínios automáticos, mas responder à capacidade de organização e inventividade do movimento. Não acredito que hoje essa dificuldade possa ser maior do que no tempo da ditadura. E o movimento, pela sua própria juventude, seu caráter popular, sua capacidade de improvisação, pela riqueza do convívio e intercâmbio que possibilita a Jornada, precisa enfrentar essa dificuldade e voltar a se reunir anualmente. Também é muito importante ter pelo menos uma Jornada, em cada gestão, sem eleições (bianuais), possibilitando a discussão mais livre dos grandes temas cineclubistas. De fato, no modo atual, reduziu-se drasticamente a possibilidade de participação, portanto a democracia do movimento, assim como diminuiu a riqueza da experiência de convívio e intercâmbio interpessoal.

Mas o movimento precisa de encontros semelhantes em nível regional, e mesmo municipal nas cidades com vários cineclubes (30). As federações e associações precisam retomar a prática de assembléias mensais ou bimensais, conforme seu território. Essa prática está diretamente ligada à superação de uma postura de expectativa, de dependência de favores públicos, e favorece o estímulo à inventividade e criatividade baseadas na força da ação coletiva, propiciada pelo convívio mais estreito e freqüente, e pelo compartilhamento de forças e recursos entre os cineclubes.

Outros encontros, com diferentes finalidades, podem e devem ser organizados tanto pelo CNC como por outras organizações, inclusive por cineclubes com mais estrutura, em localidades mais propícias, municipalidades mais interessadas ou onde haja maior diálogo com poderes e estruturas locais. Temos chamado esses encontros, genericamente, de seminários, voltados para a discussão de um tema preciso: os direitos do público; cinema e educação. Penso que a Jornada deve definir um calendário mínimo de encontros ou seminários desse tipo, assumidos não apenas pelo CNC, mas pelos outros níveis de organização a que me referi acima. O que implica que federações e cineclubes (por isso também a importância da Pré-Jornada e do processo de discussão e preparação para cada Jornada) devem preparar e levar suas propostas à Jornada, para o estabelecimento desse tipo de calendário e realização desses encontros. Tal como levam propostas de sediar a próxima Jornada, depois de estudar e conversar com possíveis apoiadores locais. Uma proposta já existente, que deve ser avaliada, aperfeiçoada ou descartada, é a do Seminário Cinema e Educação – Cineclube, Escola, Comunidade, já mencionado.

Acho importante destacar, porém, que esses seminários devem ter método e oportunidade para uma efetiva participação dos cineclubes e seus militantes, ser ocasião para troca de experiências e aprendizado, não sucumbindo à tentação ou vício de organizar “mesas” que mais homenageiam personalidades do que trazem contribuições ao entendimento do tema. Já houve até seminário sobre os direitos do público em que este não estava representado. A articulação metodológica de mesas e grupos de trabalho, quando possível, me parece importante e desejável.

3. Cursos e oficinas – Outra forma de encontro são cursos e oficinas. Estas distinguem-se (de seminários, por exemplo), idealmente, pelo comprometimento direto dos participantes na atividade, às vezes implicando na produção de resultados e/ou avaliações. À dimensão do convívio acrescenta-se a experiência de uma “mudança” pessoal compartilhada no decorrer do curso. O movimento cineclubista tem se limitado muito às oficinas e ao modelo das oficinas do programa Cine+Cultura. Estas estão voltadas fundamentalmente para a motivação dos participantes, uma rápida compreensão da prática de exibição e o treinamento para o uso das facilidades do projeto: equipamentos e filmes da Programadora Brasil. A questão filosófica ou política – no sentido de concepção cineclubista – do sentido e da orientação do trabalho cineclubista foi descontinuada (31). Faltam, portanto, muitas dimensões e aspectos da atividade cineclubista, cujo tratamento não cabe nem deve ser atribuído a terceiros, mas diretamente ao CNC, às demais organizações cineclubistas e aos próprios cineclubes. Entre esses temas incluem-se produção (que, dependendo dos recursos, método e enfoque, pode ser abordada em mais de uma oficina), documentação, preservação, edição de publicações, edição de audiovisual, montagem de ambientes e/ou blogs, gestão cineclubista, autoração, programas de compartilhamento de filmes na internet, análise de filmes, etc. Temas como a história do cinema, do público e do cineclubismo, ou ligados a aspectos definidos do cinema e/ou do audiovisual, como linguagem, história, movimentos cinematográficos, me parecem caber mais em cursos (definidos em âmbitos geográficos mais restritos, de grupos de interesse formados localmente) que propriamente oficinas.

Gostaria de lembrar o exemplo do Curso de Formação de Dirigentes Cineclubistas, com duração de um ano, que foi organizado em 1958 pelo Centro dos Cineclubes (antepassado do CNC). Esse curso teve um efeito exemplar na formação de toda uma geração de cineclubistas, críticos de cinema e cineastas, sendo mesmo uma das grandes fontes e causas do desenvolvimento de uma “cultura cinematográfica” efetivamente nacional, com a expansão dos grandes cineclubes em todos os estados, nos anos seguintes à sua realização. Penso que uma adaptação dessa idéia, incorporando todos os recursos modernos, deveria ser parte do programa da nova gestão do CNC (ou ser considerado por uma ou mais federações e/ou cineclubes): o desenvolvimento de um projeto de Curso de Formação Cineclubista com maior profundidade e extensão (combinando presença física e virtual), a ser realizado em um número determinado de cidades centrais, no período do mandato.
4. Distribuição – A circulação de filmes é a base mais essencial para a articulação de uma rede e um movimento de cineclubes. A Dinafilme, distribuidora dos cineclubes, foi a primeira medida prática empreendida pelo movimento nos anos 70; ela permitiu um desenvolvimento ainda não igualado dos cineclubes, mesmo sob intensa repressão, e a criação de um circuito de pontos de exibição mais ou menos sistemática mas não organizados como cineclubes, que chegou a cerca de 2.000 localidades do País. A distribuição é base da autonomia cineclubista (como também é o mecanismo de domínio de Hollywood sobre o mercado comercial), nos termos que tratei ao longo deste texto. É condição para a criação de um circuito onde circule um cinema que retrate, expresse e promova o diálogo entre as diversas comunidades – um objetivo que vai muito além das propostas governamentais ou dos realizadores individuais que, no entanto, também são parte fundamental desse sistema de circulação. O intercâmbio internacional é outra dimensão absolutamente fundamental que está ausente de qualquer outro projeto de distribuição existente, excetuados os de instituições diplomáticas.

Hoje, o próprio termo distribuição (32) tornou-se menos adequado, face às mudanças existentes ou brevemente possíveis de difusão das imagens e sons. Mas a idéia subsiste: o movimento cineclubista precisa criar uma articulação permanente entre os cineclubes que permita a circulação de filmes ou conteúdos audiovisuais. É necessário um centro, que reúna, estoque e preserve matrizes, que sistematize e edite informações, e as “autore” nas cópias a serem enviadas para reprodução em centros regionais e/ou diretamente para os cineclubes com menos estrutura . É importante um sistema de gestão: a administração financeira e de prioridades (aquisição de equipamentos, investimentos em regiões), a captação e seleção (quando se fizer necessária) de filmes, o diálogo com os produtores (cineclubes, realizadores e empresas), etc. Essa gestão, além de profissional, deve ser sujeita ao controle e à participação das federações e dos cineclubes, que a ela, por sua vez, aderem. A experiência histórica da Dinafilme (33), extremamente importante, pode ser uma fonte de idéias e exemplos, como o do Conselho de Administração da Dinafilme (CADINA) e os Cadinas regionais, que serviam como canal de participação, de democracia e de formação de gestores e técnicos.

Parece que o Pontão Cineclubista pode ser lançado proximamente, nas vésperas da Jornada. Seu projeto contempla a instalação e equipamento de um escritório central para a Filmoteca Carlos Vieira (34) e a viabilização de uma equipe básica. Mas o movimento não discutiu ainda a forma de gestão, de participação e de controle democrático da nossa distribuidora. Acredito que esse modelo de gestão deve superar uma concepção meramente contábil-administrativa (mantendo, é claro, as práticas básicas e normais de gestão), calcada no padrão da empresa comercial e do lucro, e deve ver essa atividade com sua componente política, sobretudo de participação, na construção de um circuito efetivamente popular e nacional para um cinema do público.

Assim, penso que a definição de um sistema de gestão e participação na Filmoteca Carlos Vieira, seu Regulamento, deve ser ponto central de deliberação da Jornada e, no que couber, suas conclusões devem ser integradas aos Estatutos do CNC e fazer parte do programa de gestão do CNC no próximo período.

Notas:

1. Esse é um fenômeno mundial, sem dúvida, que desde o ascenso do chamado neoliberalismo, nos anos 70, seguido da queda do bloco de países soviéticos, foi minando as grandes diferenças ideológicas e programáticas entre os partidos. No Brasil, contudo, o fenômeno vem juntar-se a uma tradição de conciliação e composição “pelo alto”, geralmente sem a participação popular, que sempre marcou as grandes transições da nossa História.

2. Ironia minha: quero dizer o dinheiro, o segmento do cinema que “existe” no mercado. Não confundir com a “economia da cultura”, conceito meio confuso usado, justamente, pela intelligentsia dos órgãos públicos federais.

3. Ver Macedo, F. (2008). “O modelo brasileiro: um estrangeiro em nossas telas”. In Moraes, G. (org.). O cinema de amanhã. Brasília, DF: Congresso Brasileiro de Cinema/Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural, p. 53-71.

4. Esta composição é bem particular. Simplificando um pouco, o PT é representado essencial e majoritariamente por quadros partidários da classe média e egressos do cinema amador, especialmente do curta-metragem e da ABD: deu o tom na importante ampliação do estímulo à produção dita cultural e regional, no qual acessoriamente se inserem as iniciativas de distribuição e exibição “alternativas”. O PC do B, contraditoriamente, é dominante na ANCINE, onde perfila com os interesses de Hollywood e da “indústria” nacional mas, no MINC, fora da área estritamente audiovisual, é o maior responsável pelo programa de Pontos de Cultura, voltado para a organização cultural das comunidades . A tradição do “centralismo democrático” stalinista parece resolver essa contradição. E o PV, que nem é propriamente da base governamental, entra nessa composição pelo alto, pela trajetória particular do ex-ministro Gilberto Gil – que inaugurou uma gestão dinâmica, propositiva, sofisticada e de vanguarda, com muitos quadros importantes com origem no estado da Bahia.

5. Aqui também a simplificação é acentuada: diversos realizadores de longa-metragem, assim como empresas produtoras independentes (no sentido de que normalmente não se associam à Globo e às distribuidoras estrangeiras) também participam do CBC, além da presença de representantes do ensino e da pesquisa de cinema.

6. No entanto, essa semente sempre esteve presente, constituiu desde o início a força que originou os cineclubes sem, contudo, encontrar uma formulação completa e definitiva que fosse assumida pelo movimento e capaz de orientar a sua prática.

7. As eleições da 28ª. Jornada mais que provavelmente irão consolidar o predomínio dos realizadores (ABD) e do Estado (Cine+Cultura) sobre a entidade nacional dos cineclubes brasileiros. Essa preparação/armação, que inclui mudanças importantes nos estatutos, corre em segredo há meses e previsivelmente será endossada pelo “cineclubismo real”.

8. Talvez ainda seja necessário esclarecer que nem o Estado nem a produção nacional são nossos adversários; pelo contrário, frequentemente estabelecem conosco parcerias muito produtivas e mesmo preferenciais. O que compromete o desenvolvimento do cineclubismo é a sua subordinação a orientações e interesses setoriais, corporativos ou político-governamentais que, na prática, limitam e/ou excluem a expressão dos interesses do público.

9. Principalmente da Itália, como Filippo de Sanctis e Fabio Masala, e do Brasil.

10. Há mesmo, concretamente, setores que tentam impedi-la e a combatem energicamente, com plena consciência e/ou por mero oportunismo. A demissão de Felipe Macedo do CNC se inscreve nessa problemática.

11. Sobre a questão, ver Esquenazi, Jean-Pierre. 2003. Sociologie des publics. Paris – La Découverte.

12. Uso o termo participante porque espectador tem, justamente, um viés passivo, não interativo.

13. Ver Benjamin, Walter, 2005 [1939]. “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade” em Teoria da Cultura de Massa. Costa Lima, Luiz. São Paulo – Paz e Terra. Também Kracauer, Siegfried 1987 [1926). “Cult of Distraction”, em New German Critique, vol. 40, inverno, p.92, citado por Hansen, Miriam. 2004. “Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamin) sobre o cinema e a modernidade”, em Charney, Leo e Vanessa R. Schwartz. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo – Cosac & Naify.

14. A historiografia do cinema só mais ou menos recentemente começou a rever esse processo. O público popular do “primeiro cinema” sempre se expressou ruidosamente, e mesmo organizadamente, quanto a seus interesses e gostos. O estabelecimento de um cinema-instituição, do cinema “clássico-hollywoodiano”, é uma trajetória de repressão, controle e convencimento das massas, que se estende até o final dos anos 20. Uma ótima introdução geral está em Burch, Noel. 2007 [1991].La lucarne de l’infini. Naissance du langage cinématographique. Paris – L’Harmattan.

15. Masala, Fabio. 1992. “Una Carta Internacional para los Derechos de um Publico Nuevo” em Ponencias, Comunicaciones y Conclusiones, 3º. Congresso de Cineclubes del Estado Español, Barcelona - Ed. Federació Catalana de Cine-Clubs, citado por Macedo, Felipe. 2008. “Sobre a Carta dos Direitos do Público”, circular do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros.

16. De Sanctis, Filippo. 1986. “Per uma riccerca-transformazione con el publico dei mídia”, em Masala F., Publico e comunicazione audiovisiva, Roma – Bulzoni, citado por Macedo, Felipe. 2008. “Sobre a Carta dos Direitos do Público”, circular do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros. Ver também o trabalho de Beller, Jonathan. 2006. The Cinematic Mode of Production: attention, economy and the society of spectacle. Hanover – University Press of New England.

17. Uma alternativa que não signifique a transformação radical das relações de produção – com o fim da sua essência, a propriedade privada e a exploração do homem pelo homem – não é, afinal, uma alternativa, mas continuidade.

18. Há mesmo que se considerar com uma certa reserva a idéia de que o “cinema” teve uma primeira etapa de exibição sobretudo em feiras. Frequentemente, essas projeções pioneiras eram feitas em espaços permanentes de entretenimento popular (como os vaudevilles norte-americanos) e associações de caráter classista, políticas e/ou religiosas.

19. “Cinema do povo, o primeiro cineclube”. 2010, em http://www.felipemacedocineclubes.blogspot.com/

20. Gauthier, Christophe. 1999. La passion du cinéma – Cinéphiles, ciné-clubs et salles spécialisées à Paris de 1920 à 1929. Paris : Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma et École des Chartes.

21. O que não quer dizer que elas não existam. Clubes de leitura e bibliotecas comunitárias, grupos populares e cooperativas de teatro ou de dança, escolas de samba, rodas e tantas outras formas de associação popular em torno de manifestações culturais – assim como as diferentes formas de “redes” de relacionamento na internet – também constituem experiências mais ou menos bem sucedidas de organização do público. Mas apenas o cineclube consolidou uma forma institucional universal.

22. Ver Macedo, Felipe. 2004. “O que é cineclube”, em http://cineclube.utopia.com.br/, rubrica cineclube.

23. Lacasse, Germain. 1998. “Du cinema oral au spectateur muet”, em Cinémas, vol. 9 n. 1

24. O que André Gaudreault e Tom Gunning identificaram como cinematografia de atrações nas primeiras décadas do cinema, ocupa cada vez mais a narrativa do espetáculo cinematográfico, enquanto nos videogames parece ocorrer a tendência inversa, o aumento da narratividade.

25. Nos dias de hoje, toda comunidade, sem exceção, deve ter um espaço cultural de referência, um ou mais centros culturais. Conforme a situação local, as iniciativas comunitárias podem ter seus próprios espaços ou compartilharem instalações e euipamentos.

26. Paulatinamente, na medida de suas possibilidades; no ritmo, direção e limites ditados pela decisão consciente da comunidade (dos membros ou associados) e em função de seus interesses; e preservando sua independência.

27. Incorporo nesta reflexão os princípios estabelecidos no projeto do Seminário Cinema e Educação: Cineclube – Escola – Comunidade.

28.É importante esclarecer que existe um certo número de “manuais” disponíveis para publicação, de diferentes autores e procedências, inclusive estrangeiros.

29.Como tenho denunciado reiteradamente, o conteúdo das discussões e deliberações dessa Pré-Jornada - que determinam a organização e temário da próxima Jornada, nunca foram divulgados. E foram cobrados por um único cineclubista, deixado sem resposta aparentemente em face da despreocupação com o assunto por parte do conjunto dos cineclubes brasileiros.

30. Saúdo o a 1ª. Jornada Paraense de Cineclubes e o processo de fundação da Federação Paraense de Cineclubes!

31. De fato, constituiu uma crise no início do programa, cujos dirigentes exigiram o afastamento do coordenador de conteúdos, representante do CNC, no que foram atendidos. Esse coordenador é o autor deste texto.

32. Veja-se, por exemplo, como a denominação da distribuidora governamental, Programadora Brasil, expressa, possivelmente de forma involuntária, mas reveladora, sua inclinação paternalista.

34. Ver em http://cineclube.utopia.com.br/ , na rubrica História, o texto Da distribuição clandestina ao grande circuito exibidor.

35. A denominação de Filmoteca parece contemplar bem a idéia de um acervo básico, a ser disponibilizado por não importa qual sistema ou recurso, existente ou que venha a existir.

sábado, 10 de julho de 2010


Sistema do Sistema

Deu no jornal Folha de São Paulo de hoje (10/7/2010): os recursos públicos diretos destinados ao “sistema S” este ano serão da ordem de 11,3 bilhões de reais. Somados a outras fontes de receita, o orçamento do “sistema” deverá chegar, segundo o jornal, a 16,1 bilhões de reais.

O Sistema S reúne as organizações assistenciais dirigidas pelas associações patronais da indústria (SESI, SENAI), comércio (SESC, SENAC), transportes (SEST, SENAT), agricultura (SENAR), pequena e média empresa (SEBRAE), fomento à exportação (APEX), ao desenvolvimento industrial (ABDI) e cooperativas (SESCOOP).


Se fosse um país, o Sistema ocuparia o 103º. lugar entre os produtos nacionais brutos - a totalidade da produção econômica – de uma lista de 194 países (dados encontráveis na Wikipedia, com dados do Banco Mundial, FMI e outros). À frente de vários países que falam português, do nosso vizinho, Paraguai, assim como da Islândia, Jamaica, Geórgia, Bósnia, Senegal... É um valor equivalente a mais de 10% de todos os investimentos previstos no orçamento da União para 2010 (151 bilhões). O Sistema supera também, em cerca de 2 bilhões de reais, a quantia destinada ao Bolsa Família, que é de 14,3 bilhões. E é umas 8 vezes maior que o orçamento do ministério da Cultura para 2010 – que, no entanto, é o maior da história daquele ministério, com crescimento de mais de 60% sobre 2009.

Este ano os recursos do Sistema cresceram bastante, devido ao aumento da mão-de-obra registrada, mas nada que fuja da ordem de grandeza normal que é gerida, desde os anos 40 (caso das instituições “S” mais importantes, da indústria e do comércio; algumas são mais recentes, mas bem menores, comparativamente), pelas grandes entidades patronais brasileiras, como as Confederação Nacional da Indústria, do Comércio, etc, e suas poderosas congêneres estaduais, como a FIESP, FIRJAN, etc.

Em passado recente houve uma tentativa de reformar esse “sistema” que substitui, privatiza e/ou usurpa funções do Estado em favor de um setor da economia (o capital, o patronato) e da sociedade (a classe dominante), praticamente sem controle. Segundo o jornal, as contas do Sistema são uma “caixa preta” em que a Controladoria Geral da União e o Tribunal de Contas da União sempre apontam irregularidades, sem conseqüência. Assim também aconteceu com a acanhada proposta de reforma, rapidamente abortada pela força de lobby do Sistema e pela tradicional sabedoria governamental de não cutucar a onça sem considerar cuidadosamente o tamanho da sua própria vara... Aliás, como aconteceu com a Ancinav e a Lei Geral das Comunicações – e tem tudo a ver com a atual discussão inicial dos “direitos autorais”. A disputa pelo controle das comunicações, da circulação da cultura, do acesso do público ao conhecimento, à informação, à cultura e à arte remetem imediatamente à essência do modelo social e econômico e à hegemonia na direção da sociedade.

A comparação com o orçamento do MINC cabe porque esses recursos do Sistema – a maior e mais sistemática apropriação privada de recursos públicos no Brasil – destinam-se a ações de “qualificação, educação e cultura” dos trabalhadores dos vários setores da economia nacional. O que o cotejo evidencia, é que a “iniciativa privada” tem uma capacidade de intervenção no plano da formação da população trabalhadora várias vezes superior à do Estado. E veja-se que esses recursos vêm do Estado (isto é, dos contribuintes), e ainda são complementados pelo modelo de fomento da ação cultural em vigor (em resumo, a lei Rouanet), que também privatiza as decisões de investimento.

Grande parte desta minha “reclamação rancorosa” poderia ser atribuída a um idealismo abstrato e ingênuo ou a um arcaico espírito conspiratório de tipo comunista, se as ações do Sistema estivessem à altura dos recursos públicos de que se acapara. Se o Sistema desse conta do recado. Ora, nada é mais notório que a absoluta insuficiência e profunda inadequação da formação da mão-de-obra brasileira, que hoje é talvez a maior responsável pelo desemprego e pelos “gargalos” de desenvolvimento produtivo em inúmeros setores da economia. Se considerarmos que essa - qualificação profissional - é a mais importante atribuição do Sistema e que mais diretamente beneficiaria suas empresas, se pensarmos nos valores disponíveis numa longa série histórica – de muitas dezenas de bilhões (e o Sistema ainda cobra pelos cursos) -, veremos que nossas “lideranças empresariais” não souberam aplicar nem gerir proveitosamente (para o público, pelo menos), esses vultosos recursos apropriados do conjunto da sociedade, e mais diretamente dos trabalhadores, ao longo de várias décadas.

Também no que se refere à formação cultural, o senso comum nada vê além das suntuosas (e relativamente bem equipadas) sedes dos SESIs e SENACs. Nesses espaços realmente se desenvolvem muitas atividades interessantes e proveitosas, mostrando que a questão da hegemonia moral e intelectual, nos termos de Gramsci, não é uma contraposição mecanicista entre o bom e o ruim, mas um terreno de meios tons e contradições, onde cabe o vanguardismo e até a democracia (pois servem para convalidar e justificar o Sistema), desde que circunscrita dentro de certos limites. Como já escrevi algures, o capital (isto é, a iniciativa privada) não produz cultura (que é fruto do trabalho), mas organiza e controla sua distribuição e circulação.

Da próxima vez que for ao SESC mais próximo assistir a uma projeção de um filme ou outra atividade cultural, pergunte a si mesmo o que nós, sociedade, comunidade, cineclubes, teríamos feito com um centésimo desses orçamentos aplicados durante vários anos...


domingo, 4 de julho de 2010


Consulta pública,
apoio contextualizado

Direito autoral e mais-valia, pilares do capitalismo contemporâneo

O cineclubismo é, por definição, uma atividade inconformista, ligada à recepção audiovisual crítica, ao debate. Nossos posicionamentos, por princípio e tradição também devem, idealmente, ser construídos com base no exercício da discussão, do exame crítico. Principalmente, creio, no que concerne a grandes questões de alcance nacional, de interesse do público ou que afetam a prática e a própria existência dos cineclubes.

A colocação em consulta pública da proposta do governo de alteração na Lei 9.610, “dos direitos autorais”, tem todas essas características: afeta essencialmente a circulação e o acesso a bens culturais, regula e preserva direitos essenciais do público (ao mesmo tempo que define, protege e delimita direitos dos autores), assim como recupera e institucionaliza direitos tradicionais e importantes da atividade cineclubista.

A trajetória política desse anteprojeto de lei vai ser das mais momentosas, justamente pela importância central que tem no processo de apropriação e circulação da produção cultural que, por sua vez, são cada vez mais importantes para a preservação ou para a transformação das relações de poder na sociedade mundial. A consulta pública é a etapa mais inicial dessa trajetória que vai se disputar principalmente na arena política propriamente dita: o Congresso e o espaço mediático (no qual os cineclubes ocupam um espaço, ainda que bem pequeno), através dos grupos de influência e pressão que neles se expressam. O resultado desse enfrentamento não está dado, mas será um embate vital: o lucro em estado puro contra os direitos do público. Parece-me razoável lembrar da trajetória da proposta de regulamentação do audiovisual e criação da Ancinav, há uns cinco anos, que mobilizou interesses econômicos e políticos enormes, nacionais e estrangeiros, e terminou no abortamento da proposta, antes mesmo dela chegar ao Parlamento. Vai ser uma árdua guerra, com várias batalhas, em que os cineclubes – mantendo essa metáfora bélica - constituem unidade com poder de fogo pequeno, mas com grande mobilidade nos terrenos sociais e comunitários.

Em outras palavras, e voltando ao início desta reflexão, os cineclubes têm, nesta questão, uma grande oportunidade de debater e aprofundar a compreensão do público e com o público sobre seus direitos (especialmente na regulamentação da liberdade de ação cultural das iniciativas de caráter educativo, cultural, etc, sem fins lucrativos) e, simultaneamente, uma responsabilidade muito grande de realmente difundir, popularizar o debate – especialmente junto a movimentos sociais não tão sensibilizados para o tema aparentemente “especializado” e às diferentes comunidades em que atua: bairros, escolas, prefeituras, associações, etc.

Consulta pública: instrumento de participação

A discussão com o público do que são os direitos autorais, morais e patrimoniais; de como eles são apropriados, desvirtuados pelas grandes corporações de comunicação e entretenimento – constituindo a forma mais aguda de mais-valia sobre o trabalho intelectual na época atual –, e de como a cultura, o conhecimento e a informação dependem da livre circulação dos bens e serviços culturais, certamente será de grande interesse para todos e cada um dos freqüentadores dos cineclubes, uma vez que esses assuntos estarão cada vez mais presentes nos meios de comunicação de massa. E os cineclubes talvez constituam a melhor alternativa, nos meios populares pelo menos, de contraposição a um discurso corporativo dominado justamente pelos interesses dos proprietários dos principais meios de comunicação. De certa forma, essa seria – ou pode ser – a consulta pública no seu sentido mais original e pleno. Se os cineclubes e outras instituições comunitárias não fizerem essa discussão com seu público, serão sobretudo as televisões, as cadeias de rádios, os grandes jornais e revistas que fornecerão o enfoque e a orientação para o entendimento popular da questão.

A consulta pública propriamente dita tem, evidentemente, um papel político determinante de reconhecimento, mapeamento e organização de possíveis bases de apoio para a disputa principal, que se dará na mídia e no Congresso. É muito importante que os cineclubes, como outras instituições culturais e comunitárias, manifestem seu apoio e participem do processo, registrando-se no mecanismo de consulta do ministério da Cultura. Mas a consulta pública tem fundamentalmente outra função: a de aperfeiçoar o anteprojeto de lei permitindo, sobretudo, a participação da população, do público, que não tem acesso direto, em outras circunstâncias, ao processo de elaboração do dispositivo legal. A consulta pública, junto com as audiências públicas, é instrumento importantíssimo de participação cidadã e de democracia. O governo Lula tem aberto sistematicamente esse e outros instrumentos de participação democrática, e o movimento cineclubista já deu um grande exemplo de participação na consulta sobre a Instrução Normativa da Ancine que reconheceu a existência dos cineclubes. É verdade que foi uma questão bem mais pontual, de interesse localizado, mas acredito que nossa participação vigorosa, inédita em tais consultas, foi determinante para derrubar as resistências ao cineclubismo que, também precisamos ter sempre em mente, existem mesmo dentro desse mesmo governo. A consulta pública não é, portanto, mecanismo de mera adesão, mas de participação e de crítica democrática.

Avaliação do anteprojeto: avanço e retrocesso

Por tudo o que já comentamos acima, é evidente a importância do anteprojeto e do apoio ao mesmo. Mas esse apoio deve ser refletido, contextualizado. Como é do próprio espírito da instituição consulta pública, ela admite a proposta legal como processo, que se legitima e conclui com a participação popular ativa. É preciso lembrar que o anteprojeto não foi, antes da consulta, uma mera “construção de gabinete”. Passou por um extenso processo de debate e de incorporação de propostas e reivindicações de inúmeros setores da sociedade, através de fóruns, conferências, seminários, encontros de toda ordem. O Conselho Nacional de Cineclubes teve uma participação (e reconhecimento) inédita nesse processo, levando a bandeira do cineclubismo e a idéia dos direitos do público. Diferentemente do projeto da Ancinav, por exemplo, que nunca considerou os cineclubes (ver Proposta para o anteprojeto da Ancinav, na rubrica “documentos” do saite http://cineclube.utopia.com.br/ ), mesmo após a consulta pública, agora podemos ver claramente a importância dessa participação do CNC no artigo 46 do anteprojeto. O que não quer dizer que o resultado seja perfeito ou acabado.

Como quero salientar neste artigo, a formulação resultante dessa participação é ambígua: ao mesmo tempo que faz avançar institucionalmente o cineclubismo (ou pelo menos recupera essa dimensão, antes prevista na Lei 5.536/68 e na Resolução Concine 64/81), reconhecendo sua existência ao nível da lei (superior à condição estabelecida por uma “instrução” de agência governamental), também o constringe numa visão estreita da atividade cultural comunitária, que compromete sua autonomia.

O anteprojeto e o artigo 46

O conjunto do anteprojeto é muito positivo. Não deixa, entretanto, de permitir um debate. Uma das questões importantes é a definição de coautoria na obra audiovisual que, reconhecida como obra coletiva, apenas admite os direitos autorais compartilhados do diretor, roteirista, argumentista e compositor da trilha musical. Fotografia, montagem, direção de arte, sonorização, até mesmo a organização da produção ou os intérpretes, apenas para citar alguns participantes essenciais da obra coletiva, não têm nenhum direito estabelecido na legislação.

Mas, mesmo achando que o público e os cineclubes devem se posicionar quanto a todas as questões referentes à autoria das obras e produtos culturais e aos direitos correlatos, parece-nos mais prudente e prático nos concentrarmos na parte do anteprojeto que interessa direta e especificamente aos cineclubes e às comunidades onde se desenvolve a recepção audiovisual cultural e a organização do público. Isso está fundamentalmente tratado no artigo 46º., especialmente em alguns itens e alíneas. Reproduzimos aqui os trechos que nos parecem essenciais:

Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais a utilização de obras protegidas, dispensando-se, inclusive, a prévia e expressa autorização do titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza, nos seguintes casos:

... VI – a representação teatral, a recitação ou declamação, a exibição audiovisual e a execução musical, desde que não tenham intuito de lucro e que o público possa assistir de forma gratuita, realizadas no recesso familiar ou, nos estabelecimentos de ensino, quando destinadas exclusivamente aos corpos discente e docente, pais de alunos e outras pessoas pertencentes à comunidade escolar;

IX – a reprodução, a distribuição, a comunicação e a colocação à disposição do público de obras para uso exclusivo de pessoas portadoras de deficiência, sempre que a deficiência implicar, para o gozo da obra por aquelas pessoas, necessidade de utilização mediante qualquer processo específico ou ainda de alguma adaptação da obra protegida, e desde que não haja fim comercial na reprodução ou adaptação;

XV – a representação teatral, a recitação ou declamação, a exibição audiovisual e a execução musical, desde que não tenham intuito de lucro, que o público possa assistir de forma gratuita e que ocorram na medida justificada para o fim a se atingir e nas seguintes hipóteses:

a) para fins exclusivamente didáticos;

b) com finalidade de difusão cultural e multiplicação de público, formação de opinião ou debate, por associações cineclubistas, assim reconhecidas;

XVI – a comunicação e a colocação à disposição do público de obras intelectuais protegidas que integrem as coleções ou acervos de bibliotecas, arquivos, centros de documentação, museus, cinematecas e demais instituições museológicas, para fins de pesquisa, investigação ou estudo, por qualquer meio ou processo, no interior de suas instalações ou por meio de suas redes fechadas de informática;


Comentários: a velha confusão entre gratuidade
e ausência de fins lucrativos

O que é mais positivo no artigo 46 é o reconhecimento da excepcionalidade de uma série de atividades culturais indispensáveis para a circulação e a reprodução da cultura, que não podem ser identificadas com nem limitadas por interesses comerciais. Sua prática não infringe os direitos autorais. No campo do audiovisual, depois de anos de indefinição, a partir principalmente da pressão sistemática de grandes organizações internacionais - especialmente a MPAA e RIAA (Motion Pictures Association of America e Record Industry Association of America) -, voltariam a valer muitos direitos difusos, do público, que já prevaleciam em leis anteriores (5.536, etc).

Dentre estes, destacam-se – para o nosso interesse – as atividades de caráter didático-educativo, de estudo e pesquisa, para necessidades especiais e, claro, cineclubistas.

O lado muito negativo, para as atividades comunitárias educativas e para os cineclubes é a virtual proibição de autosustentação, a obrigação da gratuidade, estabelecida pelo item VI e pela alínea b do item XV do art. 46.

Sabemos todos que a gratuidade é traço atualmente muito comum, possivelmente majoritário, na atuação da maioria dos cineclubes brasileiros. Historicamente e em relação à maioria dos países com cineclubes, entretanto, esse modelo é amplamente minoritário. No mínimo, então, sem cair no imediatismo simplista de dizer que “isso não me atinge”, penso que essa característica não pode ser eleita como modelo absoluto e imposta como lei para todos os cineclubes, que têm justamente como uma de suas características principais a diversidade de formas e de ações.

Acredito que as oficinas organizadas pelo CNC e outras iniciativas cineclubistas esclarecem sobre a diferença entre, por um lado, cobrança de colaborações ou taxas de manutenção e, por outro, o objetivo de lucro. Há vários textos sobre o assunto, que creio ser de entendimento comum no movimento cineclubista.

Ora, ao obrigar a gratuidade das ações cineclubistas, o texto da nova lei remete todos os cineclubes que não são mantidos por alguma forma de patrocínio à situação anterior, isto é, a situação atual, de verdadeira clandestinidade. Ou, se cobrarem alguma contribuição, os submete ao pagamento de taxas ou aluguéis por cópias até mesmo de domínio público – ou a ameaças e processos que também já conhecemos. Na ausência de programas de sustentação integral por parte do governo (ou de patrocínios privados que sabemos meio incomuns no caso dos cineclubes), a situação se manterá como agora.

Mesmo os programas de apoio ao cineclubismo, como a distribuição de equipamentos e acesso a acervos (Cine+Cultura, Programadora Brasil, editais estaduais), não prevêem as despesas de produção mais básicas, como energia elétrica, troca de lâmpadas de projeção, etc, sem falar da impressão de folhetos, produção de vinhetas ou da perspectiva de dedicação mais intensa dos cineclubistas. Na ausência desses programas (que variam com os governos, não são política de Estado) ou nos casos em que os cineclubes não conseguirem ser contemplados, qualquer despesa teria que ser coberta pela ajuda empresarial ou divina – ambas improváveis, em graus variados.

A lei, como está proposta, proíbe que a sociedade, a comunidade sustente a sua atividade (mesmo que em valores adequados às suas possibilidades). Elimina aquele item fundamental dos estatutos de quase todos os cineclubes, há mais de 90 anos e em todo o mundo: o cineclube se sustentará com a receita de suas atividades, além de doações e patrocínios. Dificulta ou até impede a perspectiva de atuação independente já que, sem poder se sustentar pelas sua própria iniciativa, a entidade dependerá sempre de terceiros e da isenção destes quanto à orientação do cineclube...

Mais...

Sem ser, evidentemente, uma disposição “maldosa”, ela não é, porém, acidental. Tanto que, como se pode ver nos itens acima, a obrigatoriedade da gratuidade só foi estabelecida para as escolas e suas comunidades (item VI, e alínea a do item XV), e para os cineclubes (item XV, alínea b). Para a colocação à disposição do público (isto é, qualquer forma de apresentação) com necessidades especiais, apenas se exige a ausência de fins lucrativos. Claro: como é que se vai preparar uma sessão para necessidades especiais sem despesas (subtítulos, leitura especializada, acomodações, remuneração de especialistas, etc)? Para preservar o sentido óbvio dessas ações a Lei reconhece que basta seu caráter não lucrativo. Da mesma forma, o item XVI do art. 46º. estende o mesmo direito a “bibliotecas, arquivos, centros de documentação, museus, cinematecas e demais instituições museológicas”, “por qualquer meio ou processo, no interior de suas instalações ou por meio de suas redes fechadas de informática”. A Cinemateca pode cobrar; os cineclubes, não. Mesmo que, em muitos casos, aquelas instituições já tenham sua manutenção – reconhecidamente cara, mas justa e indispensável – assegurada pelos poderes públicos.

Tanto mais necessário, portanto, não apenas (mas necessariamente) para os cineclubes, mas também para iniciativas que envolvem a relação escola-comunidade, que possam se organizar para se sustentar, cobrando “taxas de manutenção” adequadas ao poder aquisitivo de seus públicos, estabelecendo formas de associação com contribuições, inventando e promovendo (como é característica dos cineclubes e outras organizações populares) outras ações que possibilitem sua sustentabilidade e autonomia, sem constituir atividades lucrativas, em benefício de pessoas particulares e determinadas.

Considerações finais

No anteprojeto de mudança da lei 9.610, o mesmo artigo (46º.) que reconhece os cineclubes os obriga a um formato (da gratuidade) que contradiz a legislação anterior, inclusive a Instrução da Ancine, e compromete importantes perspectivas de ação cineclubista.

Até pelo excelente diálogo com o ministério da Cultura – que teve a iniciativa – deve o CNC, com apoio de todos os cineclubes, solicitar a alteração dos itens VI (escola/comunidade) e XV, alíneas a e b (fins didáticos e cineclubes), eliminando simplesmente a expressão “que o público possa assistir de forma gratuita” em ambos os casos. No caso de alguma resistência a essa proposta - como já vivemos com a Instrução Normativa - o texto do mesmo artigo indica um compromisso e redação possível: "que [eventuais contribuições ou taxas de manutenção] ocorram na medida justificada para o fim a se atingir"

Sob pena de muitos continuarem no limbo da clandestinidade, da “pirataria” e da repressão ao cineclubismo e à organização do público que as acompanha.

Julho, 4, 2010

Felipe Macedo