sábado, 28 de maio de 2011

Entrevista a Gabriel Rodríguez Álvarez, da revista Luneta, México - maio, 2011

As suas primeiras experiências com o cineclubismo brasileiro deram-se nos momentos mais duros da ditadura e no começo da democracia. Com a distância do tempo, que importância acha que teve a luta cultural nesse processo?

Quando todos os canais de participação e representação política estavam proibidos, o associativismo cineclubista permitia práticas coletivas de debate, de formação, de organização. Nessa época, os cineclubes brasileiros mais ou menos adotaram um modelo popular, diferente do cineclube elitista, de connaisseurs. Portanto, sua influência nos movimentos populares, na resistência à ditadura, foi bem significativa. Quando o processo de redemocratização do país se definiu, em meados dos anos 80, grande parte dos quadros e dirigentes desses movimentos, de entidades que voltavam à legalidade e mesmo dos partidos políticos mais populares, eram egressos dos cineclubes e do movimento cineclubista.

Como chegaram ao conceito de Conselho Nacional de Cineclubes e que obstáculos enfrentaram?

Em 1961, durante a 2ª. Jornada de Cineclubes, tentou-se criar uma União Nacional dos Cineclubes. Divididos em tendências, os delegados à Jornada só conseguiram criar um “conselho”, uma comissão preparatória da entidade. O nome acabou permanecendo. Inicialmente era, na verdade, uma confederação, onde só tinham assento e voto as federações regionais. Bem mais tarde, com a reorganização do movimento já em plena ditadura, reformamos os estatutos, passando a direção nacional a ser expressão de cada um e do conjunto dos cineclubes, com as federações ocupando funções de acompanhamento e fiscalização do processo. Recentemente, em Recife, em dezembro passado, nova reforma dos estatutos do CNC enfraqueceu a participação dos cineclubes em favor da representação por região – não necessariamente federação – seguindo um pouco o modelo da entidade de realizadores amadores, a ABD. O “Conselho” não é um conceito, portanto, apenas uma denominação histórica cuja forma e conteúdo variam conforme a trajetória política e institucional do cineclubismo.

Como era esse encontro das regiões brasileiras dentro do cineclubismo?

Nos anos 60, talvez até pelas determinações geográficas, de comunicação, etc. – além das razões mais importantes, históricas e culturais – as principais regiões tinham federações com características muito próprias. O Rio de Janeiro, até então capital federal, sempre foi o estado com mais atividade de cinema. São Paulo, que seguia de perto, sempre foi o estado mais desenvolvido economicamente. Tinha uma tradição mais forte de cineclubismo, desde os anos 40. Minas Gerais e Rio Grande do Sul, estados mais distantes de uma economia nacional (inclusive cinematográfica) muito concentrada, eram dominados inteiramente pela Igreja. Por isso a composição das primeiras diretorias do CNC, como disse na questão anterior.

Nos anos da ditadura militar, o modelo institucional com ligação direta com as bases cineclubistas, ainda que propiciasse a criação de novas federações, dava um perfil mais unitário, um projeto mais “nacional”, definido pelas maiorias obtidas em reuniões freqüentes de cineclubes de todo o país e pela criação de diversos organismos intermediários entre as federações/regiões e as ações nacionais. O exemplo mais claro é o da Dinafilme, gerida por um diretor eleito em Jornada e por um conselho com representantes regionais, ligado , por sua vez, a conselhos regionais em cada federação.

Hoje é bem diferente, mas sua pergunta é sobre o passado...

A rearticulação cineclubista no Brasil, que começou em 2003, frutificou, mas continua sem resolver questões essenciais do acesso à cultura. Como se desenvolveram, em linhas gerais, as políticas públicas de incentivo ao audiovisual e em que falharam?

Nos governos de inspiração liberal mais tradicional (anteriores ao modelo mais reformista de Lula), a cultura, as instituições públicas de cultura, sempre foram um adorno, um acessório patrimonial, e uma moeda de troca na distribuição de cargos e sinecuras. O período atual, com um leque de alianças políticas extremamente amplo, permitiu a entrada de partidos e personalidades mais à esquerda, de certa forma mais modernos, mais voltados a uma visão mais antropológica e séria da cultura. A figura de Gilberto Gil, ministro da Cultura em dois períodos, é a marca e símbolo maior dessa mudança. As políticas públicas – projetos, programas - passaram a ser muito mais inventivas, criativas e, sobretudo, inclusivas. Falando do campo do cinema, um dos mais beneficiados por essas mudanças, houve um crescimento significativo de recursos para a produção, especialmente a amadora, sem perspectiva de mercado, e um esforço importante de descentralização, possibilitando a realização de filmes em estados e regiões do país onde ela praticamente não existia. Isso também é reflexo desse processo de maior participação, maior permeabilidade, nas instituições governamentais. De fato, o ministério, a agência nacional de regulamentação e algumas estruturas anexas foram virtualmente “ocupadas” por um pequeno número de partidos ditos de esquerda, com expressão limitada – mas real – no quadro político nacional, além de segmentos do PT (o partido majoritário no governo que é, ele também, e especialmente na área cultural, uma quase “frente partidária” de várias tendências oriundas dos tempos da ditadura). De uma maneira geral, esses quadros vêm do meio amador da realização, a maioria da já citada ABD, e de outros setores da produção. Portanto, ainda que as políticas públicas dos últimos anos tenham representado avanços importantes na democratização e diversidade (o que é uma redundância, não?) da produção, seu avanço também se detém aí, limitado pela visão e interesses dos pequenos produtores e realizadores. Os recursos destinados à criação e formação de novos públicos são muito pequenos (uma fração irrisória dos recursos destinados a uma produção que, por sua vez, não é praticamente exibida) e geralmente atrelados aos objetivos imediatos da produção (por exemplo, a Programadora Brasil, distribuidora criada para atender aos circuitos informais e populares, despende mais recursos na recompra de direitos de filmes já produzidos com recursos públicos que com a distribuição propriamente dita). Mesmo assim, os parcos recursos aplicados na distribuição e exibição não comerciais propiciaram uma grande agitação numa situação em que os recursos eram inexistentes. Com a distribuição de kits de projeção a centenas de localidades, grupos comunitários, prefeituras, etc, estão sendo criados centenas de pontos de exibição. São estruturas muito precárias, de sustentação muito indefinida, orientadas mais para a exibição da produção a que me referi. Mas são o caldo de cultura de onde nascem os cineclubes – e uma parcela importante desses pontos tem se aproximado efetivamente do movimento cineclubista. Mais adiante voltamos a esta questão.

Com o novo governo, empossado este ano, há uma grande instabilidade na área cultural do governo e diversos indicadores que apontam para um retrocesso e o eventual retorno de uma visão elitista da cultura.

A grande produção, aliada ao capital hollywoodiano e com o controle do mercado real de distribuição e exibição (cinemas, televisão, etc.), pouco se abala com as “políticas públicas”, que só atingem uma percentagem irrisória da população e não afetam as rendas. Ou o poder.

Hoje, quais são os enigmas e as forças de um movimento nacional tão heterogêneo?

A força principal do movimento está numa certa tradição de cineclubismo popular que informa, alimenta esse grande número de localidades que estão projetando filmes. A grande dúvida – se esse é o sentido de enigma na sua pergunta – é se esse circuito se manterá cineclubista. Por um lado, há várias forças que procuram enfraquecer o sentido associativo original do cineclubismo, fazendo uma leitura do cineclubismo como mera atividade de exibição de filmes – como disse anteriormente, extensão da produção. Por outro lado, e de fato de forma complementar, o modelo de organização dessas atividade é completamente dependente do Estado e sem estabilidade institucional; o programa existente pode ser suspenso a qualquer momento. Esse é o fantasma que ronda o movimento.

Que papel tem nesse processo a distribuição?

A distribuição é central para qualquer projeto de cineclubismo de alcance nacional. No Brasil, temos uma história muito bonita com a Dinafilme, que sustentava o movimento cineclubista dos tempos da resistência à ditadura. Agora, o Estado criou uma empresa de distribuição que tem sido fundamental para a sustentação dos pontos de exibição que o próprio governo tem estimulado. Numa análise mais profunda, eu teceria várias críticas a esse sistema, que não é transparente e, tendo sido originalmente uma proposta dos cineclubes, foi em parte adaptado para também fomentar a produção (como digo na questão 4). O próprio nome da distribuidora – Programadora Brasil – me parece manifestar essa inclinação dirigista, paternalista, de “programar” os cineclubes e seus públicos com filmes que não são escolhidos por eles. Mesmo assim, a capacidade do Estado de poder recuperar e fornecer boas cópias (digitais) é fundamentalmente positiva.

Mas o movimento cineclubista deveria criar uma distribuidora própria – de fato, é um projeto deliberado há alguns anos, mas nunca implementado pelo CNC, da mesma forma que a CineSud (a distribuidora internacional do movimento) também não tem encontrado muito apoio no Brasil. É imprescindível a existência de fontes independentes de filmes, que distribuam filmes não “adotados” pelo Estado: a produção internacional, os clássicos indispensáveis à formação do público. No Brasil, corolário dessa questão da “hegemonia da produção” na orientação do movimento cineclubista e sua dependência do Estado, a distribuição é voltada com muita exclusividade ao cinema nacional e, especialmente, ao curta-metragem.

Mas claro que isso é um pouco atenuado pela facilidade de acesso a outras fontes, sobretudo informais e especialmente pela internet.

Os estudos do público abriram um campo inédito em relação ao mero estudo das obras de arte?

Eu acredito que há praticamente uma nova teoria do cinema a se desenvolver a partir do estudo do público. Assim como acredito que ela ainda não existe. Uma teoria do público como contexto, complementar aos estudos do cinema como texto e mesmo da recepção como processo psicanalítico, cognitivo, etc. As feministas, principalmente, entre outros estudiosos de públicos determinados (nacionalidades, etnias, orientação sexual, etc.) têm trazido contribuições importantíssimas para mostrar o quanto o público é real e determinante na reconstrução e compreensão do cinema como arte e meio de comunicação que só tem expressão objetiva na relação social concreta entre a obra e o(s) público(s). Mas esse público no singular, sem adjetivos (feminino, gay, etc.), que evidentemente se formou a partir do cinema e é o principal paradigma da organização da comunicação (da economia à ideologia) na época contemporânea; esse público que Filippo de Sanctis e Fabio Masala chamaram de novo proletariado, ainda tem que ser melhor compreendido e estudado. E isso é “o estudo das obras de arte” pois, como disse, elas se definem, na sua acepção mais definitiva, exatamente dentro dos contextos, nas relações sociais que não apenas exprimem, mas fundamentalmente estabelecem com as sociedades de cada momento histórico

Que horizontes você vislumbra através da Internet?

A internet, mais ainda que recurso, tecnologia, é um campo de comunicação novo. Novo porque ainda não é totalmente real: a internet é também e ainda um campo de batalha, em que vivemos diariamente um combate contra a sua privatização e incorporação ao modelo hegemônico de comunicação. Acho que podemos fazer uma certa analogia com o período em que o cinema começou a atingir massas de trabalhadores e outros segmentos populares e tornou-se um verdadeiro campo de batalha, especialmente nos EUA, mais ou menos entre 1906 e a entrada daquele país na primeira grande guerra. E, como, no cinema, há uma grande possibilidade de que o final dessa disputa leve à constituição de mais um – e mais eficiente - meio de reprodução do modelo vigente, de dominação do capital privado; meio também de sujeição e alienação do público, numa extensão inédita. O rádio, nos primeiros tempos, era pensado fundamentalmente como um instrumento interativo, e nos anos 30 e 40 houve uma prática importante de radioamadorismo.

Em outras palavras, como outros meios, a internet também se define mais efetivamente pelas relações sociais que ela reproduz, ou reproduzirá mais claramente. Ainda que venha a ser significativamente privatizada, sempre será um campo de disputa, como são todos os meios de expressão. E só poderá ser um elemento de integração, participação, democracia – que promete tão amplamente enquanto potencialidade – se a sociedade mesma optar pela integração e democracia, repudiando o modelo de dominação por uns poucos e pela busca suicida do lucro.


domingo, 8 de maio de 2011

O texto que segue é a base de uma proposta minha enviada à FICC, Federação Internacional de Cineclubes, ao VI Encontro Ibero-Americano de Cineclubes e ao Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros com vistas à criação do

O Dia do Público

Um dia após o outro

          Recentemente têm sido propostas novas efemérides da área cinematográfica. Acho que a última que vi foi o Dia do Curta, cuja origem confesso não conhecer. Já há algum tempo vimos comemorando e promovendo nos cineclubes o Dia da Animação, aqui representando a animação de imagens, herança de Émile Reynaud que antecede de alguns anos o próprio cinematógrafo na história das imagens em movimento.

          Outro dia, a respeito da morte do grande cineclubista Antonio Gouveia Jr., escrevi que “as comunidades de diferentes naturezas, ao construírem, reconhecerem sua identidade, projetam-na em conjuntos de fatos, pessoas, mitos, que perduram na memória coletiva e cimentam o reconhecimento do que lhes é comum”. Datas também são um símbolo importante para esse reconhecimento de uma memória e identidade comuns. Quando e quanto mais plenas de significação, tornam-se ocasião de reflexão, mobilização, demonstração dessa identidade, em termos de consciência, representatividade e força das comunidades que partilham essa herança, esse símbolo.

          O Dia do Trabalho ou do Trabalhador, assim como o Dia da Mulher, por exemplo, têm uma carga emotiva, um apelo simbólico, um significado histórico indiscutíveis. Foram criados por entidades representativas dos interessados e referendados na prática por estes. Já o Dia do Consumidor, é de outro tipo: é mais uma apropriação oportunista dos direitos dessa figura particular produzida pelo mercado capitalista, revertendo qualquer disposição de resistência e outorgando conteúdo e direção aos donos do poder. É como esses conselhos de “auto-regulamentação”, em que proprietários, patrões e predadores em geral se reúnem para cuidar dos “interesses” do rebanho. O Dia do Consumidor foi criado por decreto pelo presidente John Kennedy, dos EUA.

          No terreno do cinema a coisa ainda está meio em disputa, pode-se dizer. Não há propriamente um Dia do Cinema, refletindo talvez o forte conteúdo ideológico e nacionalista que cerca a atribuição do “nascimento” do cinema à exibição dos irmãos Lumière, de 28 de dezembro de 1895, que não foi nem a primeira projeção, nem pública e nem mesmo paga... No Brasil se dizia que o Dia do Cinema Brasileiro era o 5 de novembro – e confesso de novo que não sei a razão – mas a ANCINE deliberou solenemente que é 19 de junho (1), já não pensando em exibição, mas em produção: a data seria a da primeira “filmagem”, em 1898, supostamente feita pelo italiano Alfonso Segreto, na baía da Guanabara. Tudo isso tem suas significações, ainda que não pareça emocionar muita gente. Mas os diferentes aspectos que se procura valorizar, ao decidir-se o que há para comemorar, são indicações de como se quer entender o que é o cinema. É comércio? É a criação? O autor - e quem é o autor? É a produção? Poderia ser a relação entre o filme e o espectador – ou com o público?

          Na verdade, essas cristalizações quase sempre arbitrárias da História em datas precisas não refletem a realidade, que é processo, matiz, ubiqüidade. Mas, como disse no início, fazem parte de uma luta ideológica que se dá em todos os níveis, e constituem símbolos, ferramentas mesmo de afirmação identitária, comunitária. Por tudo isso, me parece necessário e oportuno pensarmos em um Dia do Público.

O Público

          Não vou entrar numa análise muito extensa do que seja o público, que já esbocei em outros textos – mais recentemente no trabalho que apresentei à 28ª. Jornada Nacional de Cineclubes, Tarefas dos Cineclubes na Mudança do Modelo de Cinema (2). E também na apresentação (Sobre a Carta [3]) da Carta de Tabor, que produzi em 2008 para a campanha cineclubista dos Direitos do Público, de que lembro o seguinte trecho:

“...nunca os meios e produtos de comunicação audiovisual – da televisão ao cinema, dos DVDs aos celulares – tiveram uma tal disseminação em todo o mundo. Por outro lado, especialmente nos países “em vias de desenvolvimento” ou mesmo “emergentes”, o acesso à qualidade e à pluralidade das formas de comunicação e expressão do conhecimento e da arte estão cada vez mais restritas e sendo restringidas pela privatização e controle da circulação das obras de arte e dos bens culturais. Diante de uma incrível diminuição de distâncias de comunicação e de uma inédita diversificação de meios e produtos culturais, cada vez mais a “otimização” de segmentos de mercado, o controle dos “direitos de propriedade intelectual” e, enfim, os preços absolutamente abusivos, relegam a quase totalidade das populações de países como o nosso à periferia do conhecimento e da cultura universais, a uma posição colonial diante da circulação da cultura, a uma proletarização no acesso à comunicação, à cultura, à cidadania.”

          Em Uma leitura da Carta dos Direitos do Público (4), que complementa o texto anterior, acrescento: “O público – que no mundo moderno praticamente se confunde com o conjunto da população – é encarado e relegado ao papel de platéia passiva, de espectador submisso, de consumidor desprovido de interesses e inteligência, mero objeto e nunca sujeito do processo de comunicação.”

          Duas coisas, ainda têm que ser acrescentadas a estas breves considerações. Em primeiro lugar, que o público não se limita ao público do audiovisual. Embora o público moderno tenha se formado no processo de desenvolvimento e institucionalização do cinema, esse público serviu e tornou-se paradigma de todo o público, do público do conjunto das indústrias culturais, das linguagens, suportes e formas de relação entre a criação e a recepção, cuja intermediação é apropriada pelo capital. O público é a totalidade dos que não possuem os meios de produção e distribuição da informação, do conhecimento, da cultura. Hoje ainda são as diferentes formas de expressão audiovisual – herdeiras, de certa forma, do cinema – que quantitativamente melhor espelham essa relação de subalternidade, de passividade, de espectatorialidade e exclusão do poder, do público. Mas o conceito compreende todos os que estão submetidos a essa relação de dominação: dos leitores de todo tipo de publicação até a televisão e a internet, ou as platéias de espetáculos esportivos, passando pelo teatro, a música, a dança, etc. O público é a expressão de uma relação de dominação que separa os proprietários dos meios de produção da comunicação da grande maioria da população, cujo tempo livre, atenção, consciência, subjetividade se transformam em mercadoria e espaço de colonização.

          Outra questão fundamental é que o público não é inconsciente, passivo, inerme: o público não é mero espectador. A ação permanente de exclusão e dominação do público é também ininterruptamente combatida por este. A maior e mais visível demonstração disto, hoje, é a resistência absolutamente generalizada, em todo o mundo, à privatização da internet e dos bens culturais – através do controle dos chamados “direitos autorais”. Mas a História mostra muitos outros exemplos de resistência, de luta e de criatividade do público (os cineclubes são produto e exemplo dessa criatividade) nessa disputa pelas consciências que é, talvez, a expressão mais completa da longa trajetória humana em busca da liberdade e da felicidade.

O Dia do Público

          É nessa História do Público que podemos procurar um símbolo que represente bem essa luta, que englobe o sentido de resistência, de consciência do público. E que tenha uma ressonância emocional que possa ser sentida e compreendida por todos os públicos, representando num fato histórico transcendente, simultaneamente a essência da questão da luta pela autonomia da consciência do público, do povo, de todos os povos. Penso que há um acontecimento que preenche de forma exemplar essas condições todas: é a Revolta do Astor Place (pronuncia-se “pleice”) ou do teatro Astor .

          Noel Burch (5) é talvez quem melhor analisa esse evento marcante na própria trajetória de formação do público moderno, do público de massas que só se constituiria em toda a sua plenitude com o advento do cinema. Mas o sentido dessa revolta é partilhado por todos os analistas e estudiosos. Como diz Bruce McConachie (6), da Universidade de Pittsburgh, foi, em síntese, uma luta “dos ricos contra os pobres”.

          Em 10 de maio de 1849, em Nova York, aconteceu uma grande revolta popular, que deixou pelo menos 22 mortos e uma centena de feridos (Burch fala em 35 mortos e 150 feridos, há outras versões). Foi a primeira vez que a milícia estadual foi mobilizada contra o povo. Essa revolta marca uma mudança, uma inflexão na história do espetáculo e do público.

O massacre tem sua origem trivial na rivalidade entre dois atores shakespeareanos: William MacReady era o grande astro inglês, tradicional e identificado com a hegemonia britânica no terreno artístico e cultural; Edwin Forrest, o maior ator americano, acusado de “tomar liberdades” com o texto do “divino bardo”, justamente por procurar aproximá-lo de um público mais popular. MacReady era a imagem não apenas da metrópole e da aristocracia, mas era o “queridinho” – pet of princes como dizia sua propaganda - da burguesia americana ascendente, que procurava emular a classe dominante inglesa. Forrest era a expressão de um patriotismo proletário, de um gosto das camadas médias e dos trabalhadores.

          No dia 7 de maio, McReady se apresentou na Astor Opera House diante de um público de fãs de Forrest que havia se organizado para vaiá-lo. O ator inglês decidiu, então, interromper sua turnê e voltar para a Inglaterrra, mas foi demovido da idéia por uma petição, assinada por 47 personalidades da alta sociedade. O próximo espetáculo, no dia 10, encontrou diante do teatro uma multidão de mais de 10 mil pessoas. A apresentação aconteceu, para um público seleto - depois de uma rigorosa triagem -, mas em condições muito difíceis, claro. MacReady saiu disfarçado, pelos fundos, ao final. Temendo perder o controle da cidade, as autoridades chamaram as tropas que, ameaçadas pela populaça, acabaram abrindo fogo à queima-roupa (7).

“Esse cisma entre cultura de elite ultra minoritária e cultura de massa certamente abriu caminho para o florescimento de artes “populares”, que pouco deviam ao gosto das grandes famílias do Leste do país que detinham de fato o poder financeiro, industrial e político. Mas as formas de espetáculo que então se desenvolveram numa esfera de entretenimento diferente das classes dirigentes não deixavam de servir também aos interesses destas”(8).

Memória, identidade, sentido

          Acredito que a Revolta do Astor Place, como ficou conhecida, tem, como nenhum outro acontecimento, as características que devem estar associadas à criação de um símbolo importante e permanente para unir e identificar uma comunidade – o público -, sua história e sua luta. O fato é consensualmente identificado com essa oposição – e tomada de consciência – da autonomia do público em relação aos poderes dominantes. Bem documentada, ao mesmo tempo está distante no tempo o suficiente para não se confundir com interesses menores, desta ou aquela linguagem artística ou segmento do público. É geral enquanto cultura, pois gira em torno da interpretação da obra de Shakespeare, que é indiscutível patrimônio de toda a humanidade. E é emocionalmente tão significativa quanto outras datas marcadas pela violência, pela vitimização de verdadeiros mártires anônimos que tão bem simbolizam o que é realmente uma luta, nossa luta, e que necessita desse tipo de insígnia simbólica e moral para nutrir sua memória e incrementar sua disposição.

          Que 10 de maio, dia da Revolta do Astor Place, seja eleito e considerado, a partir de uma iniciativa dos cineclubes brasileiros e ibero-americanos, e por ocasião do VI Encontro Ibero-Americano de Cineclubes, o Dia do Público. Porque o público somos nós.

Felipe Macedo - Montreal, maio de 2011.

Notas:
 
1) Bom, tem também o “Dia do Cinema Brasileiro” criado pela empresa Cinemark, principal oligopólio estadunidense no campo da exibição. Nesse dia o ingresso fica a preços razoáveis e só se exibem filmes brasileiros. É uma adorável maneira de festejar uma contradição evidente: nos outros 364 dias do ano o valor do ingresso é inaccessível para a grande maioria da população e a quase totalidade dos filmes é de produção hollywoodiana.


2) Esse artigo está disponível no blog http://www.felipemacedocineclubes.blogspot.com/ e, em versão mais concentrada, Cineclube, público, cinema e vice-versa, no arquivo de textos da lista de debates dos cineclubes brasileiros, cncdialogo@yahoogrupos.com

3) Esse texto está nos anais do I Encontro Internacional pelos Direitos do Público, de João Batista Pimentel Neto (org.), 2011, Atibaia: Associação de Difusão cultural de Atibaia, Difusão Cineclube e CNC.

4)Ibidem.

5) Noel Burch é autor fundamental para o estudo do cinema, com uma dúzia de livros e um número um pouco maior de filmes, mas muito pouco divulgado no Brasil. Apenas seu primeiro livro, Práxis do Cinema, de 1969 (!), foi publicado em português. Os comentários sobre a Revolta do Astor Place estão em seu La lucarne de l’infini – naissance du langage cinématographique, 2007 (1991). Paris: L’Harmattan, p. 121-123 e seguintes.

6) http://www.shakespeareinamericanlife.org/transcripts/mcconachie1.cfm

7) Burrows, Edwin G. e Mike Wallace. 1999. Gotham: A History of New York City to 1898. New York: Oxford University Press; Toll, Robert. 1976. The First Century of Show Business in America. Londres e N. York: Oxford University Press, e Cliff, Nigel. 2007 The Shakespeare Riots: Revenge, Drama, and Death in Nineteenth-Century America, New York: Random House.

8) Noel Burch, ibidem.