quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Corrupção

Como problema ético, a corrupção fica na fronteira da psicologia e da cultura, do indivíduo e do coletivo. Acredito que o primeiro, o sujeito tomado isoladamente, se molda de forma autônoma no caldo de cultura do ambiente social. Todos têm escolha, mas o bandido pobre é impulsionado pela necessidade; o assaltante rico, pela oportunidade. A corrupção é uma forma de roubo, também pode ser compreendida como a apropriação privada - individual ou organizada – de bens ou direitos coletivos. Resquício de formas primitivas de sobrevivência, ela se incorpora de diversas formas e em diferentes níveis nas culturas das nações e, até certo ponto, da Humanidade.

Numa simplificação esquemática – como se requer nestas redes privadas mas ditas sociais – podemos citar o exemplo da incorporação à moralidade institucional dos países mais desenvolvidos economicamente dos salários e benefícios tidos como aceitáveis para executivos, na ordem dos milhões, dezenas e até centenas de milhões (em qualquer moeda forte) anuais e sua tributação diferenciada. Nativos desses mesmos países se chocam com os hábitos de propinas de 1, 2, 10 dólares necessários a cada passo de uma demanda burocrática – liberar um produto na alfândega, obter um certificado ou autorização – ou de pequenos serviços, em certos países da África, por exemplo.

No Brasil reunimos o pior desses dois mundos. Herdeiros do Estado patrimonial deixado pelos portugueses (ou até pelos visigodos e romanos, como dizia Raymundo Faoro), com predominância de estamentos produtores e controladores de uma gigantesca burocracia, vivemos num paraíso de regras e dificuldades que apelam para soluções “inventivas” e jeitinhos extracurriculares. A enormidade de cargos públicos[i], o volume de regras extensas e gongóricas, a extrema hierarquização e morosidade do controle juciário, aliados a um éthos de privilégios e exceções elitistas, introduz aquela pequena corrupção como fator de igualdade e até de sobrevivência entre a massa de excluídos do sistema produtivo dominante, e a adapta para os escalões da burocracia estatal, nos poderes executivo, legislativo e judiciário. Ao mesmo tempo, o restante da classe dominante – na indústra, no agronegócio, nas finanças – dispõe e usufrui, ainda que em escala proporcional à sua própria grandeza relativa, dos dispositivos de desigualdade de padrão desenvolvido. Ou bônus sem ônus.

Toda corrupção é nociva mas, evidentemente, os milhões de dólares pagos como salário e bônus ao executivo de uma grande corporação ou como propina para o deputado, prefeito ou ministro (entre outros) têm um peso social muito diferente dos 10 ou 20 reais dados ao flanelinha que se apropria do espaço público ou do trocado entregue ao vendedor de balas, provavelmente roubadas, no sinal fechado. Quantias enormes subtraídas direta ou indiretamente do patrimônio público pesam realmente nos orçamentos sociais: tiram dinheiro dos investimentos em transporte, defesa, educação, de tudo um pouco. Ou um pouco mais que um pouco. No caso da saúde, por exemplo, o dinheiro ou a falta dele representam vacinas, remédios, tratamentos. Pessoas morrem ou ficam inabilitadas por toda a vida por causa dos fluxos invisíveis desses recursos. Na China existe a pena de morte para os crimes contra a economia popular. No Brasil, tal como o inconsequente maconheiro ou o ocasional consumidor de cocaína não sentem nenhuma responsabilidade sobre o estabelecimento do poder do crime organizado nas comunidades populares, na “criação de empregos” no tráfego e no crime em geral para crianças e adolescentes mais pobres, os políticos, empresários, autoridades judiciais e religiosas também parecem – ou aparentam – não ver relação entre as nebulosas operações financeiras e políticas de que participam e as incontáveis mazelas que afligem nosso País. Não, essa corrupção “de rico” é realmente um crime muito grave.

Qualquer cidadão minimamento informado – e não são tantos assim - sabe que a quase totalidade dos partidos nacionais com representação parlamentar é corrupta, nos termos acima descritos. Mais que isso, a corrupção é a razão principal da existência de muitos partidos – em número, a maioria das siglas – que existem apenas para receber recursos públicos e negociar votos e espaços midiáticos, também públicos. Os partidos mais à esquerda foram, durante muito tempo, exceção a essa “regra”, mas muitos perderam essa característica já lá se vão muitos anos. Para parlamentares evangélicos, qualquer ação se justifica por estar ao serviço do Senhor (como ateu, essa ideia é para mim um mistério: será um deus qualquer ou aquele senhor que manda na igreja?), para alguns mais à esquerda, a moralidade estaria nos altos desígnios sociais que sua organização – e eventulamente sua generosa pessoa – são as únicas a poder assegurar. Para a maioria, em todos os casos, é mesmo uma picaretagem, tipo uma sujeirinha que deve ir para debaixo do tapete. PT, PMDB, PSDB, PSD, PP, PR, PSB, PTB, DEM, PRB – para citar, em ordem decrescente, apenas as dez maiores bancadas da Câmara federal – estão todos igualmente imersos nessa cultura de corrupção[ii].

Na China, muitos desses deputados seriam fuzilados – e isso estaria de acordo com a consciência cívica que por lá se promove, diante, inclusive, de um grau elevado de corrupção, em parte beneficiado pela opacidade do governo e por outros atavismos culturais. Os brasileiros somos mais tranquilos quanto a isso, aqui só executamos corruptos (e mesmo alguns desafetos) em sonho ou na internet. A corrupção é percebida socialmente – e promovida pelos poderosos, muitos deles corruptos - como falta menor. Assim, o tratamento da corrupção em termos políticos e mediáticos tem sempre sido relativizado, abrandado, abafado – agora também por grande parte da esquerda. Mas em certas ocasiões, acontece o contrário. Os governos e instituições com presença ou influência progressista são atacados justamente pelos focos centrais da corrupção por... corrupção. A pecha da corrupção é das mais produtivas calúnias: mesmo – ou especialmente no caso de – não haver provas, ela se insinua e cola no difamado, de forma parecida com as insinuações sobre sexualidade perversa. O ato de denunciar já funciona como demonstração: “onde há fumaça, há fogo”. Virou um fator meio clássico na desestabilização política e social no Brasil. Essa era a marca da UDN, partido conservador que existiu entre 1945 e o Golpe Militar de 1964, de que foi a principal base político-institucional. O PMDB – e toda uma coorte de políticos indiciados e condenados de outros partidos – reinterpreta a farsa da UDN meio século depois. E, para distrair o público de seus próprios crimes, apresenta os do PT (com quem aqueles mesmos políticos articularam e prevaricaram à farta) como únicos e especialmente danosos.

A manobra é diabólica, audaciosa, impudente mesmo. E brilhante, diante da posição em que coloca os setores progressistas da população brasileira. A traição dos antigos aliados do PT na corrupção se traveste de movimento ético-político para justificar o aniquilamento do ex-aliado e legitimar o ataque inédito aos direitos sociais. Se não formos capazes de uma mobilização que esclareça essa situação, é bem provável que o plano golpista dê certo. Mas boa parte dos setores mais organizados da oposição ao golpe estão ou foram ligados ao governo derrubado e não conseguem superar essa ligação. A relativa injustiça (por ele ser tomado como bode expiatório) que se comete contra o grande líder desse segmento, Lula, obriga seus antigos apoiadores a defendê-lo como centro da questão política – e, dessa forma, a estreitarem a base de resistência ao golpe, confundindo os interesses e direitos da maioria da popúlação com o projeto político partidário que a maioria da população não apóia. Confundem PT e direitos sociais, Lula e democracia. Mobilizam a rua não contra o golpe e as classes dominantes corrompidas até a medula, mas são obrigados, até certo ponto, a fazê-lo sob as bandeiras do PT e de setores a ele ligados, empunhando imagens de Lula e Dilma, o que confunde e impede uma mobilização mais ampla e sobretudo mais eficaz. É a chamada sinuca de bico.

Lula deve ser defendido na Justiça e nos foros político-institucionais com todo o vigor de que dispuserem seus partidários, mas a luta política mais geral tem que se concentrar na realização de eleições o mais breve possível, como expressão da recusa enfática pelos brasileiros de um governo ilegítimo e de um programa político que assalta o País não mais sob a forma de mutretas corruptas, mas como projeto institucional de ampliação e aprofundamento da exploração da maioria da população.




[i] O Brasil tem 23.579 cargos públicos em comissão, comparados a 8 mil nos EUA, 4 mil na França, 600 no Chile, 500 na Alemanha, 300 na Inglaterra (Revista Veja, 19, nov., 2011, disponíevl em(http://veja.abril.com.br/brasil/brasil-tem-23-579-cargos-de-confianca-o-triplo-dos-eua/ . Nossa Constituição tem 28 anos, 250 artigos, com 93 emendas constitucionais; a estadunidense tem 227 anos, 7 artigos e 27 emendas. A lei que regulamenta os contratos do governo federal tem 282 páginas na versão impressa pelo Tribunal de Contas do DF:
(http://www.tc.df.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=475ad4d0-5a80-4701-9bba-5cd0b1ed4075&groupId=657810 . O tempo médio de tramitação de um processo de execução fiscal é de 8 anos, 2 meses e 9 dias apenas na Justiça Federal de Primeiro Grau: (http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/110331_comunicadoipea83.pdf)